O tempo que é vida
Os meus avós paternos eram muito pobres e tiveram de mandar o meu pai, ainda criança, para a Madalena do Mar como “moço”. Era o mais novo de onze irmãos e não havia comida para todos naquela casa de pedra na Ribeirinha, na Camacha. Vivi esse tempo intensamente nos olhos do meu pai. O percurso de sacrifício, de dor e de fé, de humildade e de coragem, de respeito e de revolta, de superação, de firmeza e de carácter, de paixão e de orgulho, de saudade e de amor, de instinto e de força, de alma, de lume, de sangue e de muita vida. Os olhos do meu pai fizeram-me sempre querer compensar aqueles momentos difíceis daquela criança sozinha, longe do lar, que se curvava perante os senhores da casa e que chorava só naquelas noites frias e distantes, também do meu tempo. Esse sentimento e o facto de ter um pai mais velho, fizeram-me viver com pressa, sem tempo a perder. Confesso que vivi com uma certa angústia e com medo da morte. Nasci em 1978, o meu pai em 1929 e a minha mãe em 1950. Significa isto que, quando nasci, o meu pai tinha já 49 anos. A minha mãe tinha 28 anos. Quando entrei na faculdade em Lisboa, em 1996, o meu pai tinha 67 anos e quando acabei o curso tinha 72 anos.
Queria dar tudo aos meus pais. Rezei muito, mas o tempo que acaba confirmou a razão das minhas angústias. Não tenho hoje a presença física do meu pai. Vivi a sua partida com a dor que me acompanha nesta segunda vida. Queria mais. Cresci a correr e agora não consigo parar. Sinto falta de parar em mim. Já não sei se sei. Tenho a minha mãe que é amor, que é luta e que é paz e que me entende sem palavras. E que me deu a vida que hoje celebro com calma. Não sou de euforias. E tenho mais caminho. Tenho os que amo e o caminho que o tempo me der, consciente que nascemos e que morremos. Sim, sou de excessos, mas procuro que sejam bons. Como diz a minha mãe, sou “pólvora”, mas também sou “bom coração”.
É assim a vida. Somos pressa e somos caminho. Somos sangue e memória. Somos pele e coragem. Somos história e esperança. Somos instinto e somos raiva e suor. Somos risco e somos medo e angústia. Somos alma e vontade. Somos calma e somos o vento que sopra e a chuva que molha. Somos o lume que queima e a fome que aperta. Somos a ferida que dói e que sara. Somos o amor que desperta, que inquieta e que cuida. Somos o frio e a lua. Somos a vida e a morte que marca. Somos sarda e cicatriz. Somos cheiro e vontade. Somos guerra e somos paz. Somos o riso e o sorriso. Somos a gargalhada e o suspiro. Somos o olhar meigo e sincero e o beijo que acalma. Somos refúgio e vendaval. Somos rio e segredo. Somos loucura. Somos fim e recomeço. Somos o abraço eterno e somos verdade. Somos a sorte e o azar. Somos construção e revolta. Somos ilusão e desilusão. Somos reposicionamento. Somos velocidade e estrada. Somos o tempo que acaba.
Tudo acaba e o momento agora é de vida, mesmo com as marcas que ficam e que nos fazem chorar. E, como disse a minha avó agora no dia 06 de julho, na recente celebração dos seus lúcidos 104 anos: “Obrigado por estarem aqui”! Saúde e muita vida! Entro agora nos meus 47 anos e nada será como antes.