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Fact Check Madeira

É possível alguém ter razão por guardar um lugar de estacionamento a outra pessoa?

A falta de estacionamentos livres e gratuitos na Praia Formosa acentua-se nesta altura de Verão.  Foto Google Earth
A falta de estacionamentos livres e gratuitos na Praia Formosa acentua-se nesta altura de Verão.  Foto Google Earth

Uma disputa de um lugar de estacionamento na Praia Formosa, gerada ontem e noticiada hoje pelo DIÁRIO, está a dar que falar, porque muitos não entendem porque é que duas pessoas podem, literalmente, ocupar um lugar onde devia estar um carro, insistindo que estavam a guardar para uma viatura que iria chegar em breve. A atitude impediu que outra pessoa colocasse o seu carro naquele lugar, numa zona que é de estacionamento delineado e gratuito.

Disputa por estacionamento gera briga na Praia Formosa

Uma madeirense garantiu ao DIÁRIO que, na tarde de ontem, foi impedida de estacionar no parque de estacionamento da Praia Formosa por um grupo de turistas.

A verdade é que a disputa, partilhada nas redes sociais por uma madeirense, que acusou as duas pessoas que faziam esta acção, aparentemente turistas, gerou muitos comentários, a maioria favorável à pessoa que viu-se impedida de estacionar, outras, em menor número, chegaram a defender a acção. Ficou a dúvida e é isso que vamos esclarecer se é possível alguém ter razão por guardar um lugar de estacionamento a outra pessoa?

Comecemos pelo mais básico, em Portugal não é permitido reservar um lugar de estacionamento público simplesmente ficando no local ou utilizando objectos como cones, cadeiras ou mesmo pedras ou paletes. Essa parece (e é) uma prática ilegal e pode resultar em multas. Se um seu amigo precisa de um lugar para estacionar, ele deve procurar um local apropriado, seja em estacionamentos pagos, zonas de estacionamento gratuito (se disponíveis) ou respeitando as regras de estacionamento em vigor na área.

Portanto, também não serve ficar no lugar enquanto o condutor não chega. Impera mais a regra do bom senso. Mas isto é muito simplista, porque é prática comum, sobretudo em zonas de maior afluência de carros, e não apenas por turistas. É prática, diga-se, também de residentes.

O Automóvel Clube de Portugal (ACP) exemplifica: "Um automobilista chega a uma rua à procura de estacionamento, ao longe vê aquilo que lhe parece um bom lugar, mas quando se aproxima percebe que está ocupado por baldes e placas de madeira que pertencem a uma obra. Mas a lei não permite essa ocupação sem uma licença da autarquia. Gerir todos os espaços públicos de uma cidade é uma das principais tarefas das câmaras municipais, onde se incluem os lugares de estacionamento tarifado. Para ocupar esses lugares, seja por obras, filmagens, mudanças ou outras situações, é preciso cumprir o regulamento municipal. Cada autarquia tem as suas regras, mas a verdade é que nas duas principais cidades é totalmente ilegal 'reservar' sem antes pedir autorização à respetiva câmara."

E aqui o ACP está a ir aos factos mais institucionais. No caso que aconteceu na praia Formosa, mas poderíamos estar a falar de outra praia qualquer pela ilha, esta é uma posição que tinha tudo para dar errado, bastava a pessoa que queria estacionar e não lhe ter sido permitida, optar por chamar a polícia. Quase de certeza que os 'guardadores de lugar' perderiam a razão.

Apresentado há mais de dois anos (em Abril de 2023), está em 'águas paradas' o espaço público da Praia Formosa com uma área de 40 mil metros e que inclui um parque de estacionamento publico subterrâneo com 280 lugares. O parque da recente disputa tem cerca de 100 lugares, o que dá para perceber a dimensão e a necessidade do parque prometido, que esta envolvido no desenvolvimento de um projecto privado.

Refira-se que do outro lado há um estacionamento, mas esse pago, com muito mais do que 100 lugares disponíveis. recorde-se que este parque (em terreno privado) esteve fechado durante alguns anos - altura em que estacionamento na via de acesso era habitual e já natural, mas que foi reaberto no Verão de 2022, mas actualmente é raro haver efectivamente ocupação máxima. O facto de ser pago 'desmotiva' maior utilização, mas também é 'prova' de que há pessoas que preferem estacionar mal e em cima de passeios ou linhas amarelas ou andar em disputas de trânsito pelo lugar vago no estacionamento.

Num dos muitos comentários à notícia no Facebook do DIÁRIO, um leitor conta o que lhe aconteceu por experiência, sendo que a grande maioria dava conta do desagrado, alguns prometendo medidas mais drástica se fosse com ela.

Esta atitude dos turistas não é estranho nada. Já assisti semelhante no Seixal um grupo de turistas a guardar lugar que ficou vago para alguém que foi buscar o carro que estava longe. Também já assisti a um jipe, daquelas passeiam turistas, que tinha colocado 6 pinos na estrada a reservar lugar para outros dois jipes, que estavam mais atrasados, poderem estacionar. Não só os turistas pensam que mandam nisto, são também madeirenses que trabalham para o turismo. Leitor do DIÁRIO
Já vi esse comportamento até em madeirenses! Aprantam-se no meio do lugar de estacionamento como se fossem um Fiat Punto com pernas, bloqueando tudo e todos, enquanto olham à volta com ar de 'o problema é teu, não meu!' Outra leitora

Após consulta ao Código da Estrada e ao Regulamento Geral do Estacionamento de Veículos à Superfície do Município do Funchal, chegamos a algumas conclusões. O Código da Estrada não estabelece que os lugares de estacionamento público são de acesso livre e devem ser ocupados por ordem de chegada. O que o artigo 70.º diz é que os locais especialmente destinados a estacionamento, quando sinalizados, só podem ser usados para esse fim - não se pode transitar ou atravessar as demarcações para outros propósitos (fala especificamente de condutores, mas deve-se entender também outros, ocupantes ou não do veículo). Também diz que os parques e zonas de estacionamento podem ser afectos a determinadas categorias de veículos, sujeitos a pagamento ou limitados no tempo, mediante regulamento, que podem existir lugares reservados, por exemplo, para deficientes ou motos (na Praia Formosa há, igualmente para carga e descarga de mercadorias). Ou seja, o Código da Estrada admite que o estacionamento seja controlado - com pagamento, limitação temporal ou reserva — mas não afirma que os lugares possam ser de uso livre e que o primeiro que chega ocupa o lugar, muito menos se forem pessoas apeadas.

O mesmo Código, no artigo 88.º, sobre Obstrução da Via, diz que quem ocupa a via pública de forma a impedir ou dificultar a livre circulação comete contraordenação, sujeita a coima (multa). Uma pessoa a bloquear fisicamente o estacionamento pode ser enquadrada neste caso relatado.

Já o regulamento municipal, na verdade apenas encontramos online o aviso, publicado em Diário da República, em Janeiro de 2020, sob a denominação "Consulta pública do projecto de alteração ao 'Regulamento de Utilização de Lugares Públicos de Estacionamento Pago à Superfície com Duração Limitada' (em vigor desde Fevereiro de 1996), agora designado por 'Regulamento Geral do Estacionamento de Veículos à Superfície do Município do Funchal', estabelece claramente a existência de três tipos de zonas: Zonas de estacionamento de duração limitada – com pagamento e limite de permanência; Zonas de estacionamento reservado – destinadas a residentes, carga/descarga, motivadores, veículos elétricos, etc; Zonas de estacionamento de livre utilização – sem pagamento, sem período máximo, nem necessidade de título de estacionamento.

Ou seja, nesta última situação que é o que interessa para o caso, o estacionamento gratuito e sem limite de tempo significa que o veículo pode parar e ficar o tempo que quiser, desde que não cometa estacionamento indevido. Também implica que não há reserva por ordem de chegada, uma vez que o regulamento não diz que quem chega primeiro ocupa obrigatoriamente o lugar (não há essa regra formal), ou seja a ocupação segue o princípio geral de respeito às normas do Código da Estrada (exemplo, não obstruir). Significa que da convivência com o Código da Estrada, mesmo sendo 'livres', esses locais devem respeitar regras básicas (não ocupar lugares reservados, manter acesso, etc.). Nunca reservar, muito menos por pessoas a ocupar lugar onde devia estar um carro.

Note-se que este regulamento não está publicado no site da CMF, estando ainda em vigor (é o documento que está disponível para consulta) o regulamento em vigor de há quase 30 anos.

Resumindo: uma vez que o que impera sobre todos os regulamentos, inclusive o bom senso, é o Código da Estrada, fique a saber que "é proibida a reserva de lugares de estacionamento na via pública, por qualquer forma, sem autorização da entidade competente", pelo que sendo uma infração considerada como contraordenação leve, o valor da coima varia entre 30 a 150 euros, nos termos do Artigo 145.º do Código da Estrada para infracções leves. Mas pode ir mais longe, pois a obstrução ou bloqueio da via pública (artigo 88.º) diz que "quem, sem autorização, colocar na via pública quaisquer objetos que possam perturbar ou impedir o trânsito é sancionado com coima" que varia entre 60 e 300 euros. E aqui aplica-se se, por exemplo, uma pessoa se coloca de pé no lugar para impedir que outro veículo estacione, causando obstrução do trânsito ou uso abusivo do espaço público. Enquadra-se claramente no caso relatado e filmado.

Conclusão óbvia: não há razão nenhuma que assista a alguém guardar um lugar de estacionamento, colocando-se entre si e o lugar destinado a veículo, impedindo outro de aceder ao espaço.

Um grupo de turistas decidiu reservar, ocupando de pé um lugar de estacionamento gratuito na Praia Formosa e, assim, impedindo uma madeirense de estacionar no lugar. Terá algo na legislação que permita tal decisão?