Serão as osgas uma espécie invasora que se está a espalhar por toda a ilha da Madeira?
A osga-comum, presente na Madeira, também come lagartixas
Uma publicação no Facebook, da autoria do biólogo Thomas Dellinger, realizada nesta terça-feira, sobre o avistamento de uma osga (Tarentola mauritanica L., 1758 – osga-comum ou osga-moura), na zona das Virtudes, no Funchal, suscitou um debate digital sobre se se está perante um endemismo, onde pode ser encontrada a espécie e que eventuais perigos pode representar na Madeira.
Diversos comentadores partilharam observações de osgas semelhantes em várias localidades da Madeira e do Porto Santo, incluindo Garajau, Caniço, Machico, Santo António, Ponta do Sol, Ribeira Brava, Lugar de Baixo, entre outras. Há também registos em cotas elevadas (ex.: Lombo do Aguiares, cota ~500 m).
O tom geral dos comentários é de simpatia ou aceitação da espécie, que é vista como inofensiva e útil no controlo de pragas de insectos. Alguns referem até tradições ou crenças que atribuem boa sorte à sua presença. Várias pessoas assumem uma postura protectora, recusando-se a matá-las e incentivando os outros a fazer o mesmo.
Contudo, também surgem comentários de repulsa ou medo, sobretudo por experiências traumáticas passadas com lagartixas, embora osgas e lagartixas sejam espécies distintas.
Afinal, é verdade que as osgas se estão a disseminar por toda a ilha? Representam algum perigo? Se sim, para quem ou para quê?
Neste trabalho vamos tentar dar algumas respostas com base científica. Por essa razão, imediatamente ficam de fora quaisquer questões/considerações ligadas a sorte.
Desde logo, é o próprio biólogo Thomas Dellinger que, na resposta a um comentário, recusa a ideia de que a osga Tarentola mauritanica seja um endemismo da Madeira (Endemismo é o termo usado para designar espécies de seres vivos que são exclusivas de uma determinada área geográfica — ou seja, que não ocorrem naturalmente em nenhum outro lugar do mundo).
Mas a maior base científica de algumas respostas, que aqui serão dadas, têm como fundamento o estudo ‘Trophic interactions of an invasive gecko in an endemic-rich oceanic island: Insights using DNA metabarcoding’, publicado em Dezembro de 2022 e que teve a participação do Museu de História Natural da Madeira, através da investigadora Ysabel Gonçalves.
O estudo incidiu nas interações da osga Tarentola mauritanica com espécies endémicas, nomeadamente, mas não exclusivamente na ilha da Madeira. Aqui incidiremos as conclusões no que ao arquipélago da Madeira diz respeito.
O estudo inclui a informação de que a primeira identificação aconteceu em 1993 no Garajau. Um estudo publicado em 2008 fazia referência à colonização do Porto Santo. “Na Ilha da Madeira, T. mauritanica foi relatada pela primeira vez por Báez e Biscoito (1993) em uma pequena localidade, Garajau, 8 km a leste do Funchal, mas agora habita a maior parte da costa sul da ilha [...]. Além disso, colonizou a ilha vizinha de Porto Santo (Jesus et al., 2008) [...]”
O referido estudo identificou o ADN de insectos para depois, analisando as fezes das osgas, identificar a sua alimentação e houve um dado surpreendente: a lagartixa da Madeira (endémica) é presa da osga. “Os nossos resultados revelaram que a dieta de T. mauritanica inclui múltiplas espécies endémicas da Madeira, como o lagarto (lagartixa) Teira dugesii (26,8% das amostras) e vários artrópodes.”
O estudo não o refere e outros para se tal se impõem, mas a disseminação da osga pode colocar em causa existência das lagartixas. Não porque concorram pelo mesmo alimento (a lagartixa preda durante o dia, a osga durante a noite), mas porque a osga come lagartixas. Julga-se que juvenis. Aliás, isso é algo já documentado com outros pequenos lagartos, por exemplo, em França.
Pedimos ao IFCN - Instituto das Florestas e Conservação da Natureza - que nos desse a sua perspectiva sobre o facto de as osgas estarem presentes na Madeira e se e de que forma podem estar a competir e/ou a prejudicar a lagartixa da Madeira.
O IFCN começou por referir que a introdução de osgas na ilha da Madeira é um fenómeno recente, com as espécies Tarentola mauritanica (desde 1993) e Hemidactylus mabouia (desde 2002), ambas introduzidas de forma acidental, provavelmente através de mercadorias. A Madeira não tem osgas nativas, excepto a Tarentola bischoffi, endémica das Ilhas Selvagens. Diz o IFCN que as osgas introduzidas coexistem sem conflitos aparentes com o único réptil terrestre nativo da ilha, a Teira dugesii (lagartixa), devido aos seus hábitos ecológicos distintos. Há maior probabilidade de competição entre as duas espécies exóticas, o que pode contribuir para o equilíbrio das suas populações.
O IFCN acrescenta que, ecologicamente, estas osgas concentram-se em zonas urbanas e costeiras quentes e secas, alimentando-se sobretudo de insetos introduzidos, o que pode ser útil no controlo de pragas urbanas. A sua expansão poderá ser favorecida pelas alterações climáticas.
O IFCN monitoriza a sua presença, sobretudo em áreas protegidas, e até ao momento não se verificaram impactos negativos relevantes sobre os habitats naturais ou sobre espécies indígenas, garante.
O referido estudo acabou por corroborar o que os comentadores afirmam e que o IFCN admite, no que respeita a avistamentos por várias zonas da ilha. “De acordo com suas afinidades bioclimáticas e ambientais, é provável que expanda ainda mais a sua distribuição na Madeira, incluindo algumas áreas da costa Norte da ilha, onde ainda não foi registrada (Silva-Rocha et al., 2022).”
Mas aqui impõe-se um esclarecimento. Cientificamente, ainda não estão documentadas visualizações da osga Tarentola mauritanica no Norte da Madeira. No entanto, a outra osga, a lagartixa-doméstica-tropical, Hemidactylus mabouia Moureau de Jonnès, 1818, já foi registada no Porto da Cruz.
Como referido pelo IFCN, o arquipélago da Madeira conta com uma osga endémica nas ilhas Selvagens, a Tarentola bischoffi Joger, 1984 (osga-das-selvagens).
A nossa pesquisa não conseguiu identificar quaisquer relatos credíveis sobre perigos para seres humanos ou para animais domésticos ou de companhia, advindos das osgas.
Pelo exposto, avaliamos como verdadeiras as afirmações que dão conta da expansão das osgas por toda a ilha da Madeira. Uma espécie invasora.