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Crónicas

O Homem que Enterrou a Autonomia para Dançar com Montenegro.

1. O Homem que Enterrou a Autonomia.

[Prometeu combate, levou dossiês a Lisboa e voltou com sorrisos. Nem helicóptero, nem respeito, só festa e propaganda.]

Miguel Albuquerque, que há anos se habituou a confundir o som dos aplausos com o da legitimidade, subiu ao púlpito do Conselho Regional do início do mês, com aquele ar concentrado de quem vai dizer uma coisa importante, mas que já nem ele sabe se é importante, nem se vai ser ouvida, nem se há alguém, de facto, interessado em ouvir, porque todos os que estavam ali já sabiam o que ia ser dito, já ouviram aquilo mil vezes, já escreveram as notas de imprensa antes das palavras serem pronunciadas, porque isto é assim: a política na Madeira funciona como algumas peças de teatro de pouca valia, com o enredo previsível, as personagens repetidas e os lugares marcados, e Albuquerque, habituado aos papéis de protagonista, recitou mais uma vez a sua frase de indignação, disse que não pactuaria com mais desconsiderações do Governo Central, que é tempo, finalmente tempo, depois de quase cinquenta anos de Autonomia, da Região ver respeitadas as suas legítimas aspirações, como se ainda houvesse alguém que não tivesse percebido que essas aspirações são retóricas e que o respeito, se vier, virá pelo silêncio, pela resignação ou pela vergonha.

Depois foi a Lisboa. Subiu a Rua da Imprensa para se encontrar com Luís Montenegro, Primeiro-Ministro de um país que olha para a Madeira como se fosse um quintal simpático, exótico, com bananeiras e turistas, onde se pode ir de vez em quando mostrar o fato de Verão e discursar sobre coesão territorial enquanto se mastiga lapas grelhadas. E Albuquerque, com o dossiê debaixo do braço, entrou como quem ainda acredita, ou finge acreditar, ou já nem sabe bem no que acredita, mas acredita que é necessário acreditar, pelo menos em frente às câmaras, e disse que ia resolver os assuntos pendentes, a Mobilidade, os Complementos, o Helicóptero, a Lei de Finanças Regionais, tudo coisas que se diz que se vai tratar como quem diz “temos de marcar um café um dia destes”. E depois passou-se o tempo, passou-se a reunião, passou-se a oportunidade, e não ficou nada.

Nada. Nem um despacho, nem uma minuta, nem uma nota de rodapé. Ficou a fotografia. Um sorriso forçado. Um texto de assessoria a dizer que “a reunião foi produtiva e decorreu num clima de grande cordialidade”, e Albuquerque regressou ao Funchal com o mesmo dossiê debaixo do braço, talvez um pouco mais amarrotado, talvez com as folhas já com cheiro a mofo, e com ele o mesmo discurso que traz desde 2015: que as coisas estão a ser tratadas, que o Governo da República está sensível, que haverá em breve novidades. A mesma lenga-lenga. A mesma cassete. E o povo, que vive com salários baixos, rendas altas, transportes maus, combustíveis absurdos e supermercados com preços de aeroporto, é convidado a acreditar, outra vez, que o homem que diz representar a Madeira está, de facto, a representá-la.

Mas a representação, aqui, não é no sentido nobre da política. É fingimento. Albuquerque não representa a Madeira, interpreta um papel. E o papel, agora, é o do resistente incompreendido, o do defensor da Autonomia que, coitado, se esforça, mas não é compreendido por Lisboa, quando a verdade, que todos sabem e poucos dizem, é que Miguel Albuquerque já desistiu da Autonomia há muito tempo, talvez no dia em que percebeu que mais valia ser aliado do PSD nacional do que defensor de uma Região periférica sem poder real, sem capacidade de imposição, sem meios nem coragem para enfrentar o poder central.

Depois, como se não bastasse a encenação lisboeta, Montenegro veio à Madeira. Não para trabalhar, não para resolver nada, não para assinar qualquer coisa. Veio para a festarola. Para o terreiro cheio, para as caras sorridentes de uma maioria que ganha salário mínimo, para o palco onde Albuquerque ainda pode fingir que manda em alguma coisa, e era ali, entre palmas, bombos e discursos de circunstância, que o Presidente do Governo Regional disse que o Primeiro-Ministro iria “apresentar decisões sobre assuntos pendentes”, como se ninguém soubesse que isso era somente mais um número da peça, mais uma cena para manter a ilusão viva, mais um capítulo do livro que já ninguém lê, mas que continua a ser publicado porque há sempre quem precise de acreditar em alguma coisa.

Mas ninguém viu decisão nenhuma. Ninguém viu anúncio. Ninguém viu nada. Só se viu o habitual: sorrisos, declarações vazias, e a confirmação de que a Madeira, em vez de ter um Governo, tem uma agência de comunicação. Em vez de um Presidente com força política, tem um actor cansado a repetir um papel mal escrito. E Montenegro, esse, sabe. Sabe que Albuquerque não tem força. Que já não tem margem. Que já não representa sequer o seu eleitorado. Que se tornou numa figura útil, mas dispensável. Num instrumento político de ocasião. Num nome que se tolera porque ainda convém.

E enquanto tudo isto acontece, enquanto os jornais alinham as mesmas notícias com as mesmas fotografias e os mesmos títulos (“Albuquerque reúne-se com Primeiro-Ministro”; “Montenegro garante apoio à Madeira”; “PSD reitera compromisso com a Autonomia”), a realidade escapa-se pelos intervalos das frases: os jovens continuam a emigrar, os transportes continuam caóticos, os serviços públicos degradam-se, os agricultores desesperam, os pescadores desistem, os estudantes envergonham-se da terra onde nasceram, os velhos morrem sozinhos, e a Madeira vai-se tornando numa caricatura de si mesma, uma terra linda, mas esvaziada. Uma Região com estatuto próprio, mas sem autonomia real. Uma bandeira hasteada por um Governo que deixou de acreditar nela há muito tempo, mas não tem coragem de a descer.

Miguel Albuquerque pode continuar a fazer discursos. Pode continuar a repetir a palavra “Autonomia” como quem reza um terço. Pode continuar a citar o Estatuto Político-Administrativo em entrevistas e comícios. Pode continuar a prometer helicópteros, aviões, milhões, combustíveis, incentivos, tudo aquilo que sabe que não virá. Mas já ninguém acredita. Nem os seus. Nem os adversários. Nem Lisboa. Nem os madeirenses.

Porque a verdade, por muito que custe, é só uma: Miguel Albuquerque não defende a Madeira, defende o seu lugar. E trocou a Autonomia por uma festa com balões, um cartaz com a cara ao lado de Montenegro e um helicóptero que nunca chegou.

2. A Plataforma Fantasma

e a Retórica de Montenegro.

[Ou como enganar uma Região com um sorriso e um microfone]

Prometeram uma plataforma, e eu vi, como quem vê uma santa na nódoa da parede, o ministro a falar com a voz educada dos filhos da classe média que subiram a escada de serviço até ao poder, com aquele olhar de quem nunca precisou de reembolso, de quem nunca perdeu dois autocarros para entregar fotocópias de uma factura nos CTT, com a dignidade amarrotada no bolso e o recibo enrugado a dizer Funchal-Lisboa ida e volta, 478 euros. Prometeram, sim, em Novembro, com os olhos muito abertos e as palavras a escorregarem como azeite velho, que em Junho tudo mudaria, que a plataforma estaria “no ar”, e que finalmente a vergonha se converteria em eficiência.

E agora é Julho, e a plataforma continua a não existir, e as filas continuam, e os velhotes continuam, e as funcionárias dos CTT continuam com as unhas pintadas de vermelho sangue a dizer que falta um comprovativo de presença na viagem, e quem trabalha perde horas de trabalho para ir solicitar o dinheiro de volta, e o povo resigna-se como quem assina o testamento com os dentes já gastos da espera. O Estado, esse grande cadáver com gravata, volta a falhar. Falha com o mesmo desvelo com que falha tudo o resto. Falha como uma mãe bêbada que promete mudar e volta sempre com o cheiro do gin barato na boca.

No domingo, no Chão da Lagoa, Luís Montenegro, aquele rosto de bom aluno que cola cartazes e um dia chega a primeiro-ministro disse, entre a euforia dos espetos de carne e os aplausos de plásticos coloridos, que os madeirenses “vão pagar menos e vão ser reembolsados com mais facilidade”. Disse isto como se estivesse a oferecer uma esmola, com aquele tom de Lisboa que nunca percebeu que a Madeira não é uma colónia, nem um subúrbio do Terreiro do Paço, mas uma terra com gente, e ruas, e mortos nos cemitérios. Disse isto e ninguém o interrompeu, ninguém lhe explicou que a facilidade de que falava era uma invenção, uma mentira vestida de prestidigitação, uma plataforma digital que nunca chegou, como nunca chega o barco da mudança, como nunca chega o que é prometido aos que vivem longe dos gabinetes com carpetes cinzentas.

E a autonomia? Essa palavra tão gasta que já parece um pano de loiça? O Governo Regional sorri, bate palmas, posa ao lado de Montenegro como se estivesse tudo bem, como se ser humilhado com elegância fosse um privilégio. Miguel Albuquerque, com o seu fato escuro e a dignidade dobrada como um guardanapo, acena ao público enquanto os seus eleitores fazem contas aos salários para ver se podem visitar o filho em Lisboa.

Não é apenas incompetência. É desrespeito. Um desrespeito tão antigo que já se tornou invisível. Um desrespeito com o qual já se aprendeu a viver. E por isso a plataforma não vem. Nem virá. Porque nunca foi pensada para existir. Foi pensada para ser dita. Para ser mostrada. Para enganar.

E o povo, este povo que já não grita, nem se indigna, este povo que carrega nos ombros o cansaço de séculos de promessas por cumprir, continua a enfiar a cabeça nas filas dos CTT, à espera de reaver o que lhe pertence. E quando alguém pergunta onde está a plataforma, respondem-lhe com o mesmo sorriso com que se responde a uma criança: “está a caminho”.

O mais trágico disto tudo? É termos aprendido a acreditar.