DNOTICIAS.PT
Artigos

A caverna de Utur

Quando o sacrifício de viver na aldeia é maior do que o benefício de ali permanecer

Utur, um dos humanos primitivos que se pensa ter vivido nas margens do rio Eufrates, na Mesopotâmia, atual Iraque, dedicava-se à caça e à pesca, colhia frutos silvestres e abrigava-se com a família numa caverna. Quando não havia comida, deslocava-se para outras localidades. A certa altura, Utur fixou-se numa aldeia onde já viviam outras famílias. Ali construiu uma cabana com paus, pedra e argila misturada com palha seca ao sol, aprendeu a semear cereais e a cultivar outros produtos agrícolas, enquanto cuidava também de animais domésticos. Estávamos no período Neolítico, por volta de 8000 a 6000 a.C. O cidadão mais velho e carismático assumiu, de modo natural, o papel de chefe da aldeia, coordenando a vida em comunidade, e todos lhe obedeciam.

Encargos

As pessoas sentiam-se seguras e felizes em comunidade, embora tivessem que cumprir tarefas comuns, como construir e manter muros à volta da aldeia; abrir e reparar caminhos e pontes; transportar água para a aldeia, etc. A vida em comunidade justificava-se na medida em que os benefícios eram superiores aos encargos que tinham que prestar.

O chefe da aldeia, a certa altura, informa que há risco de ataque de outros povos e ordena que alguns habitantes, entre eles Utur, reforcem as muralhas, mantenham vigilância permanente, além de terem de limpar os caminhos, devendo ainda contribuir com alimentos e proteger a família do chefe.

Utur ficou sem tempo para as suas culturas e, por causa do dever comunitário, a sua família passou fome. Descontente, comunicou ao chefe que o sacrifício de viver na aldeia era maior do que o benefício de ali permanecer. Utur manifestou então o desejo que a sua família recebesse alimentos comunitários, para que não passasse fome, caso contrário, ponderava regressar à vida na caverna.

Indemnização pelo sacrifício

Na atualidade, o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público, mesmo que atuem sem culpa, devem indemnizar os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais. Ou seja, danos que ultrapassem os custos próprios da vida em sociedade e mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito. É o que prevê o art.º 2.º e 16.º da Lei 67/2007 sobre a responsabilidade extracontratual do Estado e entidades coletivas públicas.

Tal como no conto da caverna, onde o dano especial e anormal foi o ponto em que Utur ponderou regressar à caverna, porque o encargo para a vida na aldeia era muito superior ao benefício da vida em comunidade.

* Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Central Administrativo do Sul