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Análise

A inquietante deriva

É confrangedor, e simultaneamente inquietante…

. Saber que a Madeira que cresce economicamente, como sustentam os insuspeitos números oficiais, não é a mesma que, por exemplo, leva o Governo a aprovar a celebração de 12 acordos de cooperação, no montante total de cerca de 545 mil euros, para assim comparticipar em despesas de funcionamento do Programa de Emergência Alimentar.

. Ter que viver no limite, - os madeirenses são os que mais pagam no supermercado -, mas também na dúvida se não será preciso emigrar de modo a constituir família, honrar compromissos e andar de cabeça erguida.

. Ouvir o Governo Regional assumir que está a preparar uma reforma profunda no Turismo, com o propósito de garantir o crescimento sustentável do sector e a qualidade do destino, e ao mesmo tempo constatar haver quem não esteja interessado em abandonar práticas que comprometem o que nos tornou únicos e apetecíveis.

. Perceber que o planeamento não é a especialidade de quem gere a coisa pública, e não é só porque o concurso para o segundo helicóptero ficou deserto e o reforço da brigada helitransportada da Protecção Civil aguarda formação.

. Canalizar apoios públicos e benesses fiscais para a habitação a custos controlados que depois se transforma, sem qualquer decoro, em alojamento local, prática que viola a lei e instala a percepção que “os privilégios são para poucos e os sacrifícios para todos”.

. Verificar que não há pruridos nos mecanismos de intrujice. Tanto uma guia estrangeira consegue vender piqueniques a 80 euros no Fanal, como há inúmeros feirantes em festivais e arraiais que não passam factura. Tanto um delinquente digital saca dinheiro aos nossos mais incautos, como um decisor passa a ideia que baixa os impostos quando apenas permite ao contribuinte ter mais dinheiro disponível no final do mês.

. Constatar que nenhum presidente de Câmara no activo marcou presença na sessão solene do dia do concelho do Porto Moniz, o que diz muito sobre as prioridades e a solidariedade de alguns autarcas.

. Notar que a festa do PSD-M na Herdade acabou num mar de velhas promessas sem grande eco. Mais do que jurar que os madeirenses não voltarão a aceitar ser tratados como “portugueses de segunda” importa tudo fazer para que sejam efectivamente de primeira. Para tal, mude-se a Constituição para que cessem os argumentos que alimentam chantagens e ameaças. Altere-se a lei de finanças regionais para que haja previsibilidade. Acabe-se com a burocracia que justifica empregos e gera demoras.

. Assistir sem reparo à dispensa de “políticos profissionais” por haver quem prefira amadores e observar a intolerância disseminada em ‘posts’ e outros discursos de ódio, sem qualquer condenação.

. Ver que há gente da terra pronta a ceder a estrangeiros a posição dominante, outrora erguida com esforço; que há um crescente número de baixas médicas que todos pagamos, pois há doenças difíceis de curar; e que a incapacidade para o trabalho em rede tarda em ser superada.

Estas e outras notícias da semana mostram que as questões por esclarecer, as suspeitas que se acumulam, as promessas repetidas, as expectativas goradas e a sobranceria injustificada não podem continuar a ser vistas como novo normal.

São sinais da deriva inquietante que fragilizam a confiança dos cidadãos nas instituições, que comprovam as falhas ancestrais nos serviços públicos, que empurram para longe jovens à procura de oportunidades, que mostram que as famílias vivem sufocadas entre rendas impagáveis e salários que não acompanham o custo de vida, que o território sofre as consequências de decisões mal ponderadas, e que na hora de agir há quem prefira refugiar-se em silêncios ou em manobras de diversão.

Mas não é só o que acontece. É o que se aceita sem reparo, nem indignação, relativizando problemas sérios, como se fosse admissível que a justiça tarde, que a ética vacile, que a mobilidade seja um capricho e que o serviço público se deteriore. Urge por isso sacudir a apatia, restaurar a exigência e renovar o sentido de responsabilidade pública.

A prova dos factos é indesmentível. Mas falta a consequência que começa na forma como cada um entende reagir, mesmo que uns optem por continuar a encolher os ombros, enquanto outros, com firmeza e dignidade, erguem a voz, convictos que ou nos tornamos parte da solução ou seremos eternos cúmplices do problema.