Ajuizar sem julgar
A feliz oportunidade que recentemente tive, de visitar a inédita exposição das obras do artista contemporâneo inglês David Hockney, presentemente a ocupar o edifício inteiro da Fundação Louis Vuitton em Paris (11 salas em 4 andares, num total de 3850 m2 de espaço), fez-me pensar sobre a maneira como a sociedade, enquanto público geral, está a encarar, processar, julgar e apreciar as figuras públicas, ditas “celebridades”, sejam famosas ou infames.
O que atrai a atenção geral parece sobretudo algo que seja infame, invulgar e passível de ser criticado e atacado. Por exemplo, julgo que mesmo aqueles que nunca viram a obra em questão de Hockney chegaram a ler uma notícia de 2018 em que se refere que um quadro dele (de 1972) foi vendido num leilão por cerca de 80 milhões de euros. Um preço bastante escandaloso para uma obra que não ostenta a pátina do tempo, não parece? E certamente não merecido, tendo em conta o abismo entre aqueles que estão em condições de pagar esse tipo de preços e “os outros”, a larga maioria de nós, não é?
Mas quem teve a oportunidade, paciência e o tempo de contemplar tudo o que está exposto nessas 11 salas saiu certamente com uma perspetiva diferente, não apenas desse preço singular, mas também do Homem Criador, não apenas vanguardista e inovador, mas também um ser humano cujo olhar regista a realidade à sua volta duma maneira extremamente individual e distinta. Uma pessoa absolutamente dedicada à sua arte e à criação, facto demonstrado pelas mais de 400 obras selecionadas da sua carreira de 70 anos (tendo sido a última criada já no ano corrente).
As páginas de imprensa, “amarela” e não só, hoje em dia, estão cheias de notícias sobre as celebridades, quanto mais lascivas, melhor. Seja isso do mundo das artes, música, moda, política – não há área que escape àquilo que neste mundo digital só se pode descrever como um vendaval incessante de abuso, profanidades, e emoções indignas e moralmente questionáveis.
Isso, porque nesse ciberespaço a reação está à distância dum clique numa fração de segundo. Porque já não dispomos de tempo para avaliar, refletir, isentar e ponderar. Os nossos comentários baseiam-se naquilo que nos é apresentado como verdade, realidade e facto consumado. Mas, a verdadeira verdade frequentemente é bem distante da “verdade” fabricada pelo sensacionalismo e luta pela atenção do leitor/consumidor.
Quantas carreiras, quantas relações humanas (veja-se o caso recente do Coldplay “kiss cam”), quantos futuros e quantas vidas foram irreversivelmente corroídas pela atenção superficial do olho público que se fixou em alguém durante escassos segundos e depois passou para o próximo caso “interessante”, entretanto deixando atrás de si o rasto de caos, depressão, pensamentos suicidais e fins violentos.
A humanidade assim está a perder a essência da sua humanidade, praticando livremente, escondida atrás dum ecrã anónimo, o provérbio de Plauto e Hobbes, “homo homini lupus” [o homem é o lobo do próprio homem].
E que tal querer saber mais, descobrir a pessoa, o ser humano, detrás da notícia, antes de tecer comentários descomedidos? Entender a sua história, entender as circunstâncias, perceber antes de julgar, empatizar antes de condenar?
E que tal trazermos este princípio para as nossas próprias vidas, as nossas comunidades e o nosso dia-a-dia? Começando por aqui, talvez não nos iríamos precipitar para desferir juízos precoces e impulsivos, nem aqui, nem acolá, escondidos atrás da anonimidade deplorável.