Os Partidos como prisão de consciência
1. Os Partidos como prisão de consciência
[ou como se mata a liberdade em nome da disciplina e se aplaude o silêncio como se fosse virtude]
A política partidária, esse velho palco com as tábuas gastas por décadas de sapatos iguais, os holofotes apontados sempre para os mesmos, a cortina que se abre para os aplausos dos fiéis e se fecha para o silêncio dos sensatos, é, para muitos, um lugar de escuridão cómoda, uma casa onde se entra descalço para não fazer barulho, onde os retratos nas paredes não são memória mas aviso, onde a entrada se faz por convicção e a permanência por medo. Um lugar em que os corredores cheiram a papel velho e a vaidade húmida, onde cada frase dita tem de ser aprovada mentalmente por um comité invisível antes de ser sussurrada, onde se aprende, cedo, que o talento sem obediência é inútil, e que a inteligência, se não serve o grupo, é perigosa. A política, nesse sentido, deixou de ser o espaço da polis e passou a ser o espaço da paróquia, com os seus dogmas, os seus altares, os seus exorcismos e os seus excomungados.
E é aqui, neste convento onde se reza a liturgia da táctica e se jejua de ideias próprias, que nascem as frases que se repetem como ladainhas, sempre ditas em tom de aviso, como se se estivesse a revelar um segredo de Estado ou a proteger uma alma frágil do pecado do pensamento livre. “O lugar onde se deve falar é aqui dentro”, dizem, com a gravidade de um bedel do século XIX, como se a democracia terminasse à porta da sede, como se as paredes fossem confessionário e as janelas fossem perigosas demais para se abrirem. O pensamento, aqui, é doméstico. As dúvidas, se as há, devem ser murmuradas entre portas, com medo de que cheguem aos ouvidos de quem tem um lugar para dar ou um castigo para aplicar. A crítica, mesmo justa, mesmo necessária, é confundida com deserção. A frontalidade, com deslealdade. A divergência, com ambição.
Depois vem o outro mandamento, “há coisas que só se podem aferir no final”, uma espécie de teologia da espera, em que se deve suspender o juízo, engolir a náusea, manter o rosto calmo enquanto se assina o acordo que nos repugna, se finge entusiasmo pelo projecto que nos envergonha, se sustenta com palavras empoladas aquilo que se sabe ser uma traição aos princípios. Porque o final, dizem, trará a luz. Mas o final, se chega, já é tarde. Porque o silêncio imposto por essa prudência cínica permite que se façam os estragos todos, e depois, quando tudo se afunda, ninguém sabe de quem foi a ideia. E os que protestam, só protestam depois, quando já não conta, quando já não se ouve, quando já só serve para parecer que houve algum pudor.
E depois há os estatutos. O famigerado, o ridículo, o absolutamente patético artigo não escrito que proíbe admirar os adversários. “Não se pode manifestar admiração pelos adversários, porque vai contra o que está escrito nos estatutos”, dizem, e não se percebe se é anedota ou sentença. Como se reconhecer o mérito do outro fosse uma forma de ceder, como se a inteligência fosse incompatível com a política, como se a verdade só pudesse estar de um lado, e esse lado fosse sempre o nosso. Como se a grandeza se medisse pela quantidade de ódio com que se fala do próximo. Como se um partido fosse mais forte por ser cego. Como se a política fosse um campeonato de clubes, e não um esforço, mesmo que adversário, por um país melhor.
Mas o que de facto explica tudo, o que revela o barro de que são feitas estas convicções moldadas à pressa, é esta frase, sussurrada com um misto de vergonha e orgulho, como quem confessa, mas espera que o absolvam: “somos pequenos, temos de influenciar o poder sempre que conseguirmos, mesmo que isso abastarde os nossos princípios”. E eis o momento em que tudo se revela. Porque se é legítimo vender os princípios pela influência, então já não se tem princípios, tem-se apenas um cardápio de ideias que se usa consoante a ocasião. A influência tornou-se o novo Deus. E tudo é permitido em nome d’Ele. Negociar com quem se criticou, calar aquilo que se sabia ser verdade, pactuar com quem se dizia ser inaceitável, dobrar o joelho ao altar do poder porque “senão outros lá estarão”. A velha desculpa dos fracos que já decidiram deixar de lutar.
Militar, neste contexto, deixou de ser acto de cidadania e passou a ser disciplina de quartel. Um processo de despersonalização, de moldagem, de domesticação. Um curso intensivo de submissão, onde se aprende a calar o impulso, a controlar o incómodo, a vestir o fato do bom soldado. Onde se aprende que há uma hierarquia e que a liberdade é inversamente proporcional ao lugar que se ocupa nela. Os que pensam, calam-se. Os que falam, obedecem. Os que discordam, disfarçam. Os que não se adaptam, desaparecem. E a organização, essa máquina que se alimenta de gestos treinados e palavras recicladas, continua a andar, mesmo que ninguém saiba para onde.
E não é por acaso que tantos bons se afastam. Que os melhores se retiram para a sombra. Que os que ainda pensam preferem a solidão da cidadania activa à promiscuidade da política passiva. Porque a política, assim, deixou de ser o lugar do ideal e passou a ser o lugar do expediente. Um sítio onde se vai para gerir, para acumular pontos, para esperar a vez. Um sítio onde se aprende a fingir. Onde o verbo “servir” se diz muito, mas se pratica pouco. Onde se fala de liberdade enquanto se entrega a alma ao colectivo.
E o mais grotesco, o mais trágico talvez, é que muitos destes ainda se dizem liberais. Ainda se arvoram em paladinos da liberdade, enquanto esmagam a liberdade dentro das suas próprias estruturas. Porque o liberalismo começa no indivíduo, e se dentro do partido esse indivíduo não pode falar, não pode pensar, não pode escolher, então o partido não é liberal. É uma farsa. Um aparelho com verniz ideológico, mas feito da mesma matéria que todos os outros: medo, poder, vaidade e sobrevivência.
E talvez, no fim de tudo, a pergunta seja só esta: vale a pena? Vale a pena sacrificar aquilo que somos em nome de um grupo que já não sabe o que defende? Vale a pena calar para subir, fingir para agradar, abandonar para conseguir? Vale a pena estar, se isso implica deixar de ser?
A resposta, para quem ainda se lembra de onde veio, é simples. E quase sempre solitária.
2. Por isso, vou continuar por aí, como quem vai porque tem de ir e não porque alguém o manda, a admirar quem sempre admirei, os poucos, os raros, os quase invisíveis que caminham tortos como todos os homens que são homens, com os sapatos gastos de tanto recusarem os atalhos e os bolsos vazios por nunca terem sabido vender-se. Os outros, os que se acomodam como gatos ao colo do poder e ronronam ao ritmo da conveniência, esses, nem um olhar, nem uma palavra, nem um aceno, deixá-los a falar entre si como crianças malcriadas à volta de um brinquedo partido. Não é rancor. É só cansaço. Um cansaço tão velho quanto o tempo, de ver os mesmos sorrisos falsos nas mesmas caras de sempre, a repetir as mesmas promessas como se alguém ainda acreditasse.
Vou continuar por aí, cabeça erguida mesmo quando chove, mesmo quando o vento, mesmo quando as vozes sussurram ao ouvido que é melhor calar, que é mais seguro ceder, que o mundo é de quem não levanta ondas. Mas eu nunca soube nadar em águas paradas. Sempre preferi os redemoinhos, as correntezas, os lugares onde se pensa com dor, onde se pensa com raiva, onde se pensa como quem cospe sangue. A cabeça, sim, é minha, e não a empresto, não a alugo, não a deixo ao cuidado de ninguém. É nela que me refugio e é nela que me perco. Que os outros tenham chefes, líderes, senhores, partidos. Eu fico com a dúvida, com a inquietação, com o desconforto que é não saber se estou certo mas saber, pelo menos, que sou eu.
E continuarei, por isso mesmo, a dizer o que me apetecer, quando me apetecer, onde me apetecer, da forma que me apetecer, com as palavras que me apetecerem, com a ternura ou a raiva que me apetecer mostrar, mesmo que não agrade, mesmo que desarrume, mesmo que seja um murro na calma dos outros. Porque me apetece dizer, porque me apetece existir, porque me apetece resistir ao cómodo consenso dos que já desistiram. E quando me apetecer calar, calarei. Quando me apetecer gritar, gritarei. Quando me apetecer rir à frente de quem se leva demasiado a sério, fá-lo-ei com gosto. Porque há um prazer quase infantil em dizer o que nos apetece quando o mundo só nos quer dizer o que devemos. E o meu maior prazer, talvez o único que me interessa conservar, é esse: o de ser livre quando não convém, o de dizer o que me apetecer no exacto instante em que mais se esperava que me calasse.
E se um dia este caminho me levar a lugar nenhum, paciência. Já fui tantas vezes a lado nenhum que aprendi a ver beleza nos desvios. Os outros ficam à espera que o mundo lhes bata à porta com palmas e louros, eu contento-me com um banco à sombra, uma frase bem dita, uma gargalhada partilhada com quem ficou, com quem entende, com quem também se recusou. Não preciso de mais. Nunca precisei. Só quero continuar, mesmo que ninguém repare, mesmo que me digam que não vale a pena. Continuar porque sim. Porque não sei ser de outra maneira. Assim, como sou, livre e com princípios.