A memória seletiva e a pandemia da desinformação
Pelo impacto social, falemos de habitação. Que nunca esteve, proclama-se, tão mal como agora
Creio que todos têm consciência de que a memória é seletiva (e não curta).
O problema decorre, diz-se, da grande maioria de nós ter tendência para sobrevalorizar o que acontece no seu tempo pessoal “e durante e com” as suas vivências, assumindo-se, ainda, que muito decorre dos benefícios (ou prejuízos) induzidos por cada situação vivida.
Este comportamento, infelizmente, parece envolver, também, quem tem a obrigação de preservar os factos e as circunstâncias, em especial as que estão para além da espuma dos dias e dos atores envolvidos na mesma.
Tudo isto a propósito de quê, perguntar-se-á o leitor?
Pela perceção de que, na opinião pública (ou publicada) dos dias que correm, e qual lógica de que o passado se restringe ao ontem, muitas situações parecem nunca ter ocorrido, tal como não terão existido os que as induziram, implementaram, sofreram ou beneficiaram.
Tenho consciência de que a maior parte dessas leituras e interpretações são decorrentes de ideias mil vezes reproduzidas, sem critério, nas redes sociais. Mas assumo que há, também, responsabilidades atribuíveis a quem incumbe analisar e contextualizar todos os factos e circunstâncias e, em linha com esse exercício, esclarecer e informar, de modo racional e não emocional (ou mesmo visceral, como tantas vezes se constata nas redes sociais).
Exemplos? De todas as áreas e sectores.
Pelo impacto social, falemos de habitação. Que nunca esteve, proclama-se, tão mal como agora. Para quem não viveu e só para estabelecer uma comparação recente, nos anos 70 do século passado, após a vaga de 600 mil retornados (como eu) que entrou, em Portugal, em cerca de 2 anos. Período em que, por experiência própria e de familiares, para se viver com um mínimo de condições, se tinha de dividir a casa com outros casais ou alugar apartamentos turísticos (o AL de então) faltando, depois, dinheiro para outras coisas, inclusive para a alimentação.
E com a agravante de, não havendo plafond nos bancos, pelos limites definidos pelo Estado para o crédito à habitação, só se poder avançar com a compra ou a construção de casa ... com juros na ordem dos 29-30%. E hoje crama-se de 3%.Ainda a propósito de infra-estruturas e indo, agora, um pouco mais atrás.
Exalta-se, como único e maior, o desempenho (suportado nos fundos europeus) de Cavaco Silva enquanto 1.º ministro, mas ignora-se, sem qualquer pejo, Fontes Pereira de Melo, que, em tempo de vacas muito mais magras; com um país envolto num turbilhão político e sem metade das condições técnicas do século XX, conseguiu transformar, por completo e à escala, no século XIX, a área dos transportes e das comunicações em Portugal.
E podia invocar muitos outros exemplos, mas o espaço escasseia. Acabo, assim, como comecei. Relevando a seletividade da memória.
Mas alertando para o facto de que se há quem, privadamente, não se assume como cidadão de corpo inteiro e, por má-fé e/ou ignorância, a utiliza para enganar o próximo (como se observa, amiúde, nas redes sociais), já não a consigo aceitar em quem tem responsabilidades públicas e deve conhecer e divulgar os processos históricos tal como são, por forma a garantir que não contribui, também, para a pandemia da desinformação.