O equilíbrio entre a escassez e a dignidade
Eu vinha do Laranjal e, por lá, não existiam muitas pessoas modernas. O nosso modo de vida assentava na poupança e na ideia de usar tudo até romper
O Laranjal não era um sítio moderno, antes pelo contrário. À festa da paróquia faltava charme e ninguém fazia o esforço para ir dar ao arraial, onde a música vinha do coreto e havia dois bazares de rifas. Nós conhecíamos quem lá ia, pessoas que víamos na missa e no autocarro, que viviam em casas parecidas com a nossa. Os homens eram mestres pedreiros, carpinteiros, pintores de casa; as mulheres tratavam da casa, bordavam ou eram modistas. Os mais novos tinham experimentado a escola, mas, num lugar onde era necessário ter artes de equilibrista para sobreviver à escassez com dignidade, uma parte desistia antes de acabar.
Na cidade havia empregos e, lá em cima, uma mão-de-obra ansiosa por mudar de vida encostava os livros e os cadernos sem remorsos. Ser doutor exigia as notas e o dinheiro que não tinham, o emprego no hotel ou nas lojas trazia um salário que, bem poupado, dava para comprar um carro velho ou para aumentar dois quartos na casa dos pais e casar. A festa fazia-se num sábado no quintal; a despedida de solteiro era a uma quinta, o dia em que se fazia a cama dos noivos.
O número de carros estacionados no caminho aumentou e as casas mudaram de forma e, em alguns casos, os anexos engoliram o modelo original. E todos os terraços ganharam uma ou duas antenas de televisão, para ver a RTP e a de Canárias. Da cidade, os carros de praça trouxeram mobília que nunca se tinha visto, como sofás e colchões de molas, quadros para decorar paredes e ficar bonito. O que, no Laranjal, era um avanço tão grande como mandar os filhos para o liceu ou para a industrial. Duas extravagâncias que a minha mãe cometeu.
A dona Celina não deixou de ser a senhora austera capaz de aproveitar tudo para gastar menos, mas as exigências modernas tornaram a minha adolescência ainda mais complicada. A escola, a sala, o telefone em cima do aparador da casa de jantar reduziram a zero as minhas aspirações e todos os sonhos que se formaram na minha cabeça quando passava pelas montras do centro comercial Infante que, ao tempo, tinha as lojas de melhor fama. Uns ténis Nike, umas borrachas com cheiro e uns cadernos com folhas cor-de-rosa, as três coisas que me podiam fazer subir na apertada pirâmide social do intervalo das aulas nos Ilhéus.
Não tive oportunidade para comprovar, nunca tive o dinheiro e acho que me faltou até a coragem para tentar. Eu vinha do Laranjal e, por lá, não existiam muitas pessoas modernas. O nosso modo de vida assentava na poupança e na ideia de usar tudo até romper. A roupa comprava-se três vezes por ano: no Natal, na Festa da Paróquia e antes de começar às aulas. A minha mãe usava os restos de tecido da alfaiataria do meu tio Humberto para fazer saias, adaptava peças que vinham das minhas tias, tirava os saltos dos sapatos e os livros passavam do meu irmão para mim. Os objectos circulavam por nós, de uns para os outros, até a minha tia Teresa dizer que precisava de trapos para fazer tornadores para a levada.
Se a roupa passava de uns para os outros e havia espaço de sobra nos armários, também se lavava os sacos de plástico e o papel embrulho servia para forrar gavetas. Os canaviais garantiam canas para fazer cestos, para estacar as flores, o feijão e os tomateiros. A erva alimentava os animais, os vimeiros seguravam as margens da ribeira e davam terra para os vasos que enchiam o quintal. E, da fazenda, chegavam cachos de bananas, nêsperas, ameixas, maracujás, anonas, abacates, batatas e abóboras. Este ecossistema alimentou-nos durante a infância e a adolescência, enquanto o meu pai aumentava a casa e exigia que se passasse de ano na escola.
O meu pai, a minha mãe e as minhas tias eram, na verdade, gestores de um sistema de economia circular, onde todas coisas tinham um propósito e muitas vidas numa luta para gastar menos, para sobreviver e manter a dignidade na missa e no consultório do médico. Se hoje parece um privilégio, há 40 anos era o modo de vida dos pobres.