Os melhores cachorros quentes
Aquele corpo tinha aparecido sem me pedir licença. Num dia era uma criança; noutro estava assim, a mostrar o bilhete de identidade
Quando a minha mãe decidiu matricular-me numa escola pequena, com poucos alunos e que funcionava numa casa grande com jardim, fez por bem e com as melhores intenções. Eu estava a crescer mais depressa do que imaginara e, apesar da insistência em calçar-me sandálias inglesas e meias até ao joelho, era impossível esconder-me. A pré-adolescente de 12 anos habitava um corpo de mulher e, para evitar imprevistos, a dona Celina meteu-nos num ‘horário’ e fomos para a fila das matrículas na escola dos Ilhéus.
Fomos num dia de calor, com sol e a humidade a colar a roupa às costas e as pernas aos bancos do autocarro. E deve ter ficado tudo ainda mais quente e desconfortável por causa da discussão com o bilheteiro, que exigiu ver a minha data de nascimento antes de cobrar meio bilhete. “Só 12 anos?” A minha mãe a dizer que sim, que não pagava mais, que visse com os próprios olhos, a pequena tinha saído ao pai. A conversa era a mesma em todas as viagens e eu só me senti avaliada quando descemos na paragem da Caboqueira.
E foi um trio esquisito o que passou pelo portão dos Ilhéus. A minha mãe com os papéis dentro da mala preta, o vestido de Verão e os dois filhos, ambos maiores do que ela. A dona Celina era uma senhora de poucos estudos, mas ciente dos direitos e disposta a passar pelo suplício da burocracia. Se fosse o caso, viria as vezes que fossem necessárias para nos matricular naquela escola com aspecto de quinta antiga e garantir que íamos ter aulas no turno da manhã.
Para o meu irmão era uma espécie de recomeço, um lugar para assentar a cabeça depois de ter chumbado o 9º ano. A minha mãe também aplicou um castigo mais duro e obrigou-o a trabalhar com o meu pai nas obras, acho que para ver como seria o futuro se falhasse mais uma vez. A história comigo era outra e não passava pelas notas, estava em mim, naquele corpo com cara de menina que queria proteger e era melhor ali, numa escola pequena, com poucos alunos, muros à volta, um lago com peixes e árvores frondosas. “É melhor para ti, mais calmo”.
Eu teria preferido apagar-me na multidão, num lugar onde ninguém me visse, mas estava ali a ouvir a minha mãe a dizer ao professor de serviço às inscrições que, por causa dos transportes, os ‘horários’ iam cheios de tarde, anoitecia cedo nos dias pequenos e não era boa ideia ter uma criança fora de casa assim. “É que tem este tamanho, mas só tem 12, não é repetente e até é boa de cabeça”. Era sempre bom esclarecer, mais ou menos como no autocarro para ter direito a meio bilhete.
Não era repetente, nem tinha defeito, mas todos, em todos os lugares, lembravam-me o tamanho do meu corpo e de como não combinava com a idade do bilhete de identidade. As mulheres dos bordados diziam que ia parecer velha antes do tempo e que não ia demorar muito até arranjar um noivo. O que me parecia terrível. Eu não queria ter um noivo, nem um namorado, assim a sério, com beijos e passeios de mão dada. Aquele corpo tinha aparecido sem me pedir licença. Num dia era uma criança; noutro estava assim, a mostrar o bilhete de identidade e com a minha mãe preocupada, a matricular-me numa escola pequena, com poucos alunos e longe do centro.
E foi, entre as árvores frondosas e o lago dos peixes semi-destruído dos Ilhéus, que atravessei a minha adolescência e custou muito. Foi duro, mas, ao menos, o cenário era bonito e o bar vendia os melhores cachorros quentes.