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Fact Check Madeira

Será que não há nada na lei que impeça os pais de darem "uma malha” numa criança?

Foto Shutterstock
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“Aqui a lei permite bater nas crianças?”. A questão foi colocada há uma semana na plataforma Reddit por um cidadão alemão que reside na Madeira há pelo menos seis meses e que ficou surpreendido com a forma violenta como uma mãe puniu uma criança. “Eu estava num restaurante e vi uma mulher a bater duas ou três vezes com muita força no rosto do filho de 5 ou 6 anos. A minha esposa pediu que ela parasse e não batesse na criança. Mas ela gritou agressivamente e insultou-a, dizendo que poderia fazer o que quisesse com o filho e que não havia nada na lei que o impedisse”, descreve o autor do texto. Será que é mesmo assim?

Na mesma publicação nas redes sociais, o cidadão alemão, que diz ser escritor e ter 60 anos, confessa que o que mais o surpreendeu na cena da mãe violenta foi que ninguém no restaurante, incluindo os empregados, tenha dito uma palavra de reprovação sobre o assunto. Toda a gente menorizou ou fingiu não perceber o que se passou.

Até hoje, o desabafo na plataforma Reddit motivou 37 comentários. Há quem considere que dar “uma malha” numa criança “é completamente normal e necessário em todas as famílias”, pois “é assim que as crianças são criadas correctamente” e que as palavras não chegam para educar um menor. “Umas palmadas nunca fizeram mal a ninguém”, adianta outra pessoa.

Mas a maioria das pessoas que comentam a publicação do cidadão alemão critica a aplicação de castigos violentos sobre crianças. “É crime bater em crianças por qualquer motivo”, assegura um madeirense, que lamenta que “abusar fisicamente de uma criança como ‘disciplina’” ainda seja “bastante normalizado na ilha”. “Como madeirense, acho isso repugnante e vergonhoso. Felizmente, essa prática está em declínio, à medida que as gerações mais jovens se consciencializam dos danos psicológicos que esse tipo de agressão causa nas crianças. Parabéns por se manifestar. Se não condenarmos publicamente essas práticas, elas continuarão a repetir-se como um trauma geracional”, complementa o mesmo comentador.

Outro madeirense reconhece que a sociedade regional tolera um certo grau de violência disciplinar dos pais sobre as crianças, apesar de isso não ser permitido por lei. “Os visitantes podem pensar que somos super receptivos e tolerantes. Mas não somos. A cultura aqui é de ‘guardar segredo’, um pouco como os japoneses (mas não a esse extremo). Na verdade, somos antiquados e conservadores. Neste exemplo específico [ocorrido no restaurante], duvido que alguém interferisse. Mas se [magoar a criança] fosse algo comum com esses pais, alguém faria uma denúncia anónima. Seria muito improvável que alguém interferisse pessoalmente, a menos que estejamos falando de uma criança que ficasse realmente magoada”, adianta.

Mas, afinal, o que diz a lei sobre este assunto. Em Portugal o castigo físico das crianças é ilegal desde 2007, sendo punido pelo Código Penal pelo crime de violência doméstica (art.152.º) de maus tratos (art.152.º-A) e de ofensa à integridade física (art. 143.º). “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais (…) a menor que seja seu descendente (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, refere a lei sobre o primeiro destes crimes. Quanto ao crime de maus tratos, “quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor (eee.) e lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

A própria Constituição Portuguesa estipula o direito à integridade física (artigo 25.º) e o Código Civil preceitua que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (art. 70.º).

No entanto, a sociedade portuguesa tende a tolerar as chamadas ‘palmadas pedagógicas’ e alguns castigos físicos leves ou moderados. Em certa medida corresponde a uma interpretação muito ampla do disposto no artigo 1878.º do Código Civil, na parte em que diz que “os filhos devem obediência aos pais” e “compete aos pais (…) dirigir a sua educação”.

Embora nem todas as palmadas isoladas sejam automaticamente consideradas crime, os tribunais portugueses têm evoluído no sentido de entender que qualquer agressão física a uma criança é inaceitável e o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais. Há várias decisões judiciais neste sentido. Por exemplo, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de 11 de Julho de 2024, um pai é condenado a dois anos e meio de prisão (suspensa) pelo crime de violência doméstica, por, entre vários outros actos, ter dado uma palmada na zona da anca que provocou dores e deixou uma marca avermelhada no filho de 4 anos de idade. Foi ainda condenado a pagar uma indemnização de 800 euros à criança.

Outro acórdão do TRL, com data de 12 de Outubro de 2016, condenou um pai a dez anos de prisão (pena suspensa), pela prática do crime de ofensa à integridade física, por ter desferido uma pancada com um cinto nas pernas da sua filha de 7 anos, provocando-lhe equimoses na coxa, no joelho e na perna.

O mesmo TRL confirmou a 20 de Fevereiro de 2025 uma sentença do tribunal de Lisboa que condenou uma mãe a dois anos e meio de prisão (pena suspensa), pela prática do crime de violência doméstica, por ter submergido a filha de 3 anos na piscina, até à zona do queixo, como forma de calar a sua birra. Noutra ocasião, em que a criança estava a chorar, levou-a para a casa de banho e, vestida com o pijama, molhou-a com água fria. Esta mãe relatou o seu método de educação numa página de Instagram.

Conclui-se, pois, ser falso que a legislação portuguesa permita aos pais aplicar castigos corporais aos filhos.

"Eu estava num restaurante e vi uma mulher a bater duas ou três vezes com muita força no rosto do filho de 5 ou 6 anos. A minha esposa pediu que ela parasse e não batesse na criança. Mas ela gritou agressivamente e insultou-a, dizendo que poderia fazer o que quisesse com o filho e que não havia nada na lei que o impedisse. Aqui a lei permite bater nas crianças?" - desabafo de cidadão alemão, na rede social Reddit