O cavalo morto
Um dia destes, entre amigos, a conversa era sobre a Madeira e o cavalo morto. A bem da verdade, a discussão era sobre o futuro da Região, enquadrada na loucura a leste e no médio oriente. Da displicência de algum turismo ao trânsito descomedido (recordando, a cada quilómetro, que até na pista dos carrinhos de choque há regras), o óbvio foi dito: “não há muito a discorrer do ponto de vista partidário, quando há um vencedor ininterrupto desde 1976”.
Continuamos, com preocupação, a pensar a cidade barulhenta em que se tornou o Funchal e seguimos rua acima, da Avenida do Mar rumo ao João Gonçalves Zarco. Contámos 31 carros estacionados nas proximidades do palácio de São Lourenço. Valeu-nos a PSP que, mesmo sem homens e meios suficientes, rapidamente resolveu o assunto.
Caiu no prato uma pergunta: é isto que queremos para Madeira? Uma espécie de faroeste tolerado em nome de um “desenvolvimento”, que ninguém sabe qual é. É a violação constante da Natureza que assumimos como um mal menor a ser sacrificado? Quem protege o Fanal? O Arieiro? O monumental Pico Ruivo? Quem cuida do futuro?
A falta de casa? Quem desistiu dos que dormem na rua? A violência? E a pobreza? “A Madeira está acima da média nacional na taxa de risco de pobreza ou exclusão social. São quase três pontos percentuais, 19,1%. A média nacional é de 16,6%, de acordo com o relatório Portugal Balanço Social 2024”, pode-se ler no site da RTP. Mas somos tão ricos por metro quadrado. É este o registo que fica marcado pelo silêncio de muitos. O preço de se ser ilha é caro, mas paga-se muito mais caro por se alimentar cavalos mortos.
Continuámos caminho, e como sempre, os argumentos eram esgrimidos ora mais à esquerda, ora à direita, e os amigos liberais sem saberem para que lado devem cair (imagino a expressão do Nuno se ler este comentário). Importa que, nas diferenças que nos distinguem, há uma força maior que nos une: a amizade.
Isto levou, entre cerca de 50 minutos de conversa lenta na agora sobrelotada Placa Central, com barracas e afins, à pergunta simples do mais jovem do grupo: porque continuam a alimentar o cavalo morto? Para quê investir tempo, esforço ou recursos no que já não é possibilidade nem futuro? O que é falhado será sempre inútil e, provavelmente, irrecuperável. Quem se recusa a aceitar o fracasso, e nele insiste irracionalmente, é porque não percebeu o sentido de estar ao serviço da causa pública. Esta causa já disse, vezes sem fim, quem não quer para lhe servir. Por que razão se mantém esta lógica de manutenção num poder que já nem é seu?
Aos poucos todos se vão afastando. A conversa sobre o futuro da Região e do Funchal ficou-se por aí.
Éramos um grupo de ideologias distintas, de acordo num ponto: quando um líder político perde a legitimidade, o apoio popular, a capacidade de inovar ou de vencer eleições, cansa. Mais ainda quando insiste em manter-se ativo no poder, numa ilusão infantil de magistratura de influência. Sem perspetivas de futuro, estamos perante um cavalo morto — e quem o apoia ou tenta ressuscitá-lo está a alimentá-lo. Porquê? Vaidade? Conveniência? Inércia? Até isso deixou de ser importante perceber. Basta que se afaste em nome da democracia que tanto defende.
A mim, o tempo mostrou que importa saber preservar, tal como nos refere Sófocles na belíssima obra Antígona, a ideia de que é melhor ser árvore flexível junto ao rio do que se deixar arrastar pela aspereza das águas. “Só sobrevivem às tempestades os ramos que se dobram — pois os mais rígidos são rasgados pela força do vento.” O cavalo morto há muito que foi levado pelo rio.