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Uma instituição também morre por dentro

Um partido pode continuar de pé mesmo depois de ter morrido por dentro? Pode e está a acontecer . Vê-se a estrutura, os cargos, ouvem-se as declarações e os discursos. Mas já não há alma, nem rumo, nem verdade, nem visão para o futuro. Só fica o apego ao lugar, o hábito do poder e a recusa teimosa e fatigante de partir. E essa permanência, mais do que um sinal de força, é o retrato fiel da deterioração, da ruína silenciosa . Há, apesar de tudo, em alguns protagonistas, sinais genuínos de boa vontade, mas a liderança, enredada na sua própria insuficiência, tornou-se um corpo tóxico e entrópico. Incapaz de inspirar ou conduzir, não edifica apenas corrompe. Em vez de abrir caminhos, fecha horizontes; em vez de elevar, arrasta todos para o fundo, impondo uma lenta erosão da esperança e do mérito.

Para que serve então um partido que se afastou das pessoas, que se desligou das causas, que perdeu o fio da história e o fulgor do futuro? Um partido sem ideias, sem chama, sem vontade – entregue à inércia dos seus próprios vícios e à vaidade dos seus rostos mais cansados?

A incapacidade de regeneração é o maior sinal de morte lenta. Quando uma organização perde a coragem de se transformar, perde também a legitimidade de existir. Torna-se uma caricatura do que foi, ou do que poderia ter sido. Sufoca-se a utilidade da sua existência, anula-se a capacidade de representar quem a criou e mata-se a esperança.

A este propósito, lembro-me que há uns anos, fui convidado a liderar uma entidade público-privada em visível falência funcional. O diagnóstico era óbvio: ausência de visão estratégica, mas sobretudo falta de alma. Faltava liderança, entusiasmo e ambição. Reinava a gestão da vidinha – acomodada, rotineira, desligada da própria razão da sua existência . A instituição era uma sombra de si mesma.

Os que a criaram, estavam, simbolicamente, identificados em caixas de cartão pardo, com etiquetas amareladas e letras desbotadas. As salas, mergulhadas em penumbra, mostravam candeeiros sujos, cobertos por manchas negras de insectos que ali habitavam activamente. As sombras confundiam-se com os passos lentos dos protagonistas, vencidos pelo peso do tempo e do desinteresse.

Tinham-se instalado, entranhado, e haviam confundido a estrutura com a sua sobrevivência pessoal. Tinham deixado de representar o que quer que seja, mas alguns continuavam a mandar. Tinham deixado de inspirar, mas continuavam a ocupar. Tinham deixado de ouvir, mas continuavam a decidir.

Lembro-me bem de subir as escadas, guiado por uma carpete vermelha já opaca e gasta. Ninguém notou a minha chegada. Vagueavam, alheios e no seu mundo. Chamei-os um a um. Propus uma ideia de refundação. De reencontro com os objectivos da sua criação . De regresso aos princípios. Uma mudança verdadeira, sem imposição, mas com clareza: ou se muda ou se morre.

A reacção foi fria. A ideia de mudança causava mais medo do que a certeza da decadência. Era mais fácil continuar a empurrar os dias e a fingir utilidade. Mas há alturas em que o mais difícil – sair de vez – é o único gesto honesto.

A verdade é esta: há quem precise de mudar de vida. Por mais que se agarrem, já não servem o colectivo, apenas a si mesmos. A permanência, nesses casos, é um acto de destruição. Continuar a qualquer custo é matar o que ainda resiste. A saída definitiva, pelo contrário, é uma forma superior de compromisso. De dignidade. De respeito pela história que se viveu e pela que ainda se pode escrever.

Há momentos em que partir é a única forma honesta de permanecer fiel à missão. Ou se tem a lucidez de sair — ou a instituição morre. Não com um estrondo, mas com a lentidão triste das coisas que já não servem, que se mantêm apenas por teimosia ou vaidade e em alguns casos oportunismo pessoal. Mas sair, verdadeiramente sair, não é encenar uma retirada para melhor controlar o momento da sucessão ou condicionar quem possa vir a substituir. Isso é desonesto. Isso significa prolongar a asfixia sob o disfarce da renúncia. Sair é desligar-se por inteiro, libertar a instituição da própria sombra e permitir que reencontre, no seu propósito mais profundo, o impulso vital de um relançamento tão urgente quanto indispensável.