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Crónicas

Quando o amor é estável, o mundo é seguro

O maior desafio talvez não seja o de gerir as nossas expectativas relativamente aos filhos, ou à deficiência, mas as que temos sobre nós próprios como pais, como seres humanos. E aprender que ser presente, em lucidez e amor incondicional, vale mais do que qualquer idealização

Dizia Santo Agostinho que a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem. A indignação ensina-nos a não aceitar o mundo como está. A coragem, a ousar transformá-lo. Tenho comigo este pensamento que também levei para as II Jornadas Técnico-Pedagógicas, no Funchal. Não participei como jornalista, nem como autora. Fui oradora enquanto mãe, encarregada de educação e representante legal da minha filha mais velha, uma jovem de 18 anos, portadora de deficiência - défice cognitivo e intelectual que - mais do que uma condição, é um convite constante à reinvenção do nosso olhar.

É muito interessante constatar como certas palavras pesam mais do que parecem. “Expectativa”, por exemplo. Tem o som leve de um desejo, de uma esperança suave, e, na prática, é uma faca de dois gumes. Por um lado pode ser uma âncora, por outro, uma prisão. Principalmente quando somos pais.

Tendemos a criar expectativas antes mesmo de conhecermos os nossos filhos. Ainda na barriga, imaginamos traços, feitios, percursos. E depois eles nascem, com o seu corpo, o seu ritmo, a sua essência e nós, tantas vezes sem notar, tentamos moldá-los ao que idealizámos, ou ao que alguém ou ‘alguéns’ nos fizeram crer, em vez de os acolhermos como são, por quem são.

Quando um filho nasce com uma deficiência, ou quando ela se manifesta, o confronto com essas expectativas torna-se ainda mais evidente. E é nessa altura que somos chamados a desaprender rapidamente, a largar o controlo, a revisitar o que acreditávamos ser “normal” ou “melhor”, a parar de comparar. Este exercício, na verdade, é necessário com todos os filhos, com ou sem deficiência.

Aqui, a parentalidade generativa volta a ser bússola, num caminho de presença, de escuta, de humildade. Onde amar é também desarmar-se e acolher a vulnerabilidade. A nossa. A dos nossos filhos. É um convite a vivermos num lugar de presença e humildade. A viver com intenção. Claro que não significa viver uma vida onde está sempre tudo bem. Significa antes, estar consciente dos desafios e lidar com os mesmos. Significa viver uma vida autêntica. Onde as emoções têm lugar. Onde existem práticas linguísticas que nutrem a autoestima. Frases com significado, ditas com intencionalidade, aos nossos filhos (a nós próprios, também!). Tais como:

“Tu és suficiente tal como és.”

“Amo-te por quem és.”

“Tu és importante e podes contar sempre comigo.”

Todos temos impacto. E todos podemos (re)aprender a reconectar.

Mesmo as famílias mais conscientes falham. Todos falhamos. A questão está na qualidade e intencionalidade da reconexão. Está na velocidade com que ela se dá. Está em saber que cada interação é uma oportunidade para co-construir um novo caminho. Está em saber que, mesmo quando não recebemos estabilidade emocional, podemos escolhê-la agora. Para nós. E para os nossos filhos.

A grande viragem acontece quando deixamos de responsabilizar os outros pelas nossas emoções e começamos a reconhecê-las como mensagens internas. Quando começamos a escolher o que fazemos com aquilo que sentimos. E esse é um ponto de viragem no exercício do nosso poder pessoal. A perceber que o nosso papel não é desenhar a vida dos nossos filhos, menos ainda vivê-la, é antes, acompanhá-los na arte de desenhar e viver a sua própria história. É ir além do medo, nos braços da coragem. É deixar de amar uma projeção idealizada, e começar a amar, sem condições, a pessoa real que está à nossa frente.

E nada disto significa desistir de ter sonhos ou deixar de guiar. Significa, sim, distinguir o que é nosso: medo, ambição, orgulho, culpa, do que é deles; os tempos, os limites, os dons, os caminhos. Porque quando confundimos estas fronteiras, corremos o risco de os sobrecarregar com pesos que não são seus, de os desmotivar e desencantar. De os afastar da liberdade e do direito de serem autênticos. E, no fim, é isso que também todos nós queremos: sermos vistos. Sem performance. Sem medalhas. Com verdade.

O maior dos privilégios é, talvez, podermos ser nós próprios em segurança. E se não o tivemos, ainda assim, podemos ser nós a oferecê-lo. A nós. E aos que chegam depois de nós.

É por isso que importa gerir expectativas que é como quem diz: escutá-las. Reconhecer quando estamos a pedir que nos validem através dos seus sucessos, quando estamos a temer que a diferença nos confronte com o olhar dos outros, quando queremos que correspondam a um guião que já não serve, ou que nunca serviu. E depois, é escolher soltar. Respirar fundo e confiar.

Se é fácil? Não! Sobretudo num mundo que mede o valor por resultados, notas, estatísticas, “desenvolvimentos típicos” (e tantas vezes, dispensáveis!) - porque as crianças (e os adultos!) não querem ser avaliados. Querem ser vistos, reconhecidos, aceites e incluídos. É possível. E é urgente. Porque um filho que sente que é amado e que é aceite como é, por quem é, cresce com raízes fortes, com a autoestima saudável, num porto seguro. E esse é o maior presente que lhe podemos dar.