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Análise

Construir pontes

1. A eleição de Leão XIV é, antes de mais, uma resposta simbólica e pastoral a um mundo ferido: pela guerra, pela desigualdade e por uma solidão espiritual que alastra silenciosamente. Herdeiro directo do espírito reformador de Francisco, este novo pontífice não surge como figura de ruptura, mas sim como continuidade amadurecida, serena, prudente e enraizada no discernimento eclesial.

Não será, nem deve ser, uma cópia de Francisco. Este último foi o Papa dos gestos simples e da proximidade genuína, aquele que soube tocar os corações dos que se haviam afastado da prática cristã, e que resgatou a doutrina social da Igreja do seu exílio burocrático. Francisco recolocou a Igreja no caminho do serviço e das periferias, fazendo estremecer os alicerces de uma Cúria enredada em formalismos estéreis. Devolveu-lhe um rosto humano, pobre, peregrino e comprometido.

Leão XIV, com um nome que evoca tradição doutrinal, mas também renovação possível, é agora chamado a dialogar com um Ocidente fatigado de si próprio e com um Sul global que clama por justiça e reconhecimento. O seu primeiro discurso, sóbrio e directo, revelou a lucidez de quem conhece bem o peso e a urgência da Palavra. Falou da necessidade de uma paz “desarmada e desarmante” e é nessa procura que se traçará, talvez, o fio condutor do seu pontificado.

O mundo não carece de mais diplomatas com vestes brancas, mas de pastores com cheiro a rebanho e coluna vertebral. Leão XIV parece saber disso. E, para já, essa consciência basta-nos como sinal de esperança.

Que o seu exemplo inaugure um tempo menos ortodoxo, mais inclusivo e sintonizado com os desafios reais do presente. Que as portas e janelas que Francisco ousou abrir se mantenham escancaradas, mesmo que para tal seja necessário enfrentar, com firmeza evangélica, a resistência dos conservadores empedernidos da velha guarda da Santa Sé.

2. Por cá, também é urgente construir pontes. Numa semana em que o novo Programa de Governo foi debatido e aprovado, não basta seguir a “estratégia traçada”, como afirmou o presidente do Governo Regional. A retórica já não basta. É preciso governar com ambição renovada e não esmorecer com a comodidade da maioria parlamentar, respondendo, de forma efectiva, aos problemas reais que afectam milhares de madeirenses.

É certo que os 48 meses de crescimento económico e os baixos níveis de desemprego constituem indicadores positivos. Mas a propaganda de sucesso esbarra, todos os dias, na realidade dura de uma Região onde há famílias inteiras a viver na pobreza, milhares a aguardar por uma habitação condigna, e outros tantos à espera de uma consulta médica ou de uma cirurgia. A promessa de bem-estar esvanece-se diante das macas que se acumulam no serviço de urgência, ocupadas por idosos sem alternativa, que não deveriam estar ali, mas sim em estruturas residenciais adequadas, com cuidados continuados e dignidade.

A Madeira de hoje não precisa tanto de creches, mas de respostas sociais ajustadas ao envelhecimento acelerado da sua população. A emergência silenciosa dos nossos dias é a ausência de condições para uma velhice digna. Esse deve ser o novo desígnio social do Governo.

Durante a semana parlamentar, muitas prioridades foram enunciadas, mobilidade, revisão da Lei de Finanças Regionais, entre outras que exigem diálogo com a República. Mas esse diálogo tem de ser real, consequente, e não apenas um pretexto para confrontos estéreis. Após as eleições legislativas nacionais do próximo domingo, caberá ao Governo Regional saber construir pontes com Lisboa, qualquer que seja a cor partidária do executivo que venha a tomar posse.

Ter maioria absoluta não pode ser sinónimo de arrogância política. Pelo contrário, implica maior responsabilidade. Agora, com estabilidade assegurada, não há desculpas possíveis. Chegou a hora de responder com acção e resultados aos problemas que continuam à espera. A Madeira não precisa de mais discursos; precisa, sim, de soluções.