A Autonomia não se proclama, pratica-se
A época natalícia está a chegar, trazendo consigo aquela liturgia afetiva que transforma cada viagem para a Madeira num regresso à “ilha, paz”, onde a identidade se confirma e onde o reencontro é, ele próprio, uma forma de resistência. É precisamente neste tempo de maior vulnerabilidade emocional que a TAP decidiu testar os limites da condescendência e aferir até onde poderia levar a instrumentalização comercial da nossa insularidade.
A tentativa de introdução, quase clandestina, de uma nova taxa nas ligações para o Funchal constituiu muito mais do que um gesto de oportunismo: foi um sinal inequívoco da facilidade com que certas estruturas nacionais ainda olham para as Regiões Autónomas - territórios de negociação secundária, espaços onde a cidadania pode ser relativizada e em que a Autonomia parece um acidente histórico tolerado, nunca completamente respeitado.
Para a TAP, o madeirense que voa para casa não é um cidadão com direitos; é um consumidor cativo, um alvo tarifário fácil, alguém que pode ser empurrado para a sensação absurda de que voltar à sua própria terra é um privilégio. Esta distorção não é ingénua - é, sim, estrutural, persistente e revela uma cultura interna em que a ideia de serviço público surge apenas como obrigatoriedade jurídica e nunca como responsabilidade moral.
O recuo não surgiu de qualquer arrependimento, foi um mero exercício de cálculo, desses que se fazem à pressa quando a manobra é desmascarada antes de amadurecer. A TAP não voltou atrás porque, subitamente, lhe despertou a consciência cívica ou porque reconheceu, num lampejo tardio, que a Madeira integra o país cuja bandeira diz ostentar. Recuou porque percebeu que o truque perdera a sombra e que a tentativa, exposta à luz, não resistiria ao escrutínio público.
É verdade que recuou. Mas deixou à vista a tentação profunda de tratar a mobilidade dos madeirenses como uma variável menor, moldável ao sabor das conveniências administrativas e da contabilidade impaciente do lucro circunstancial. Recuou, mas não desmentiu a intenção. Recuou, mas expôs-se.
Que se tenha memória, e não esquecimento. O que está em causa não é uma taxa, é o modo como uma companhia aérea nacional escolhe olhar, e tratar, uma parte do seu próprio país. E o que a TAP revelou, uma vez mais, foi a ausência completa de pudor e de vergonha na forma como compreende a Autonomia e o direito elementar dos madeirenses a chegarem ao seu destino sem serem penalizados por, simplesmente, existirem num arquipélago.
Subiram à tona, a par de todo este episódio, os falsos moralistas do costume. A hipocrisia política é, aliás, desmascarada com a mesma rapidez de quem chega à ilha para beber poncha. Quando a TAP tentou reduzir os madeirenses à condição de súbditos tarifários, uma parte significativa dos autoproclamados “autonomistas” refugiaram-se no silêncio conveniente, cuidadosamente escondidos entre a comodidade e a irrelevância. A Autonomia não se proclama, pratica-se. E os madeirenses, que há muito distinguem a substância do artifício, têm o discernimento de diferenciar, sem equívoco, quem sustenta a Autonomia com a firmeza de uma convicção provada - independentemente das circunstâncias políticas -, de quem apenas a evoca quando isso não exige coragem nem tampouco consequência.