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Deixamos tudo correr?

O fim último da acção política é a construção de uma sociedade nova, na qual cada um possa realizar-se como pessoa na Liberdade, na Igualdade e na Fraternidade com todos os demais cidadãos, participando democraticamente na vida cívica, cultural e económica das comunidades, para ela contribuindo com o seu trabalho e dela extraindo as condições necessárias para uma vida digna. Por outras palavras, a edificação de uma comunidade humana e justa, e não um país com riquezas, oportunidades e sucessos para apenas alguns.

No entanto, nas últimas décadas, a solidificação do papel das instituições da Democracia e a relativa alternância governativa que tem sido verificada entre o PS e o PSD na liderança da República não têm resultado num país competitivo, equilibrado e capaz de oferecer aos seus cidadãos o contexto social, político e económico necessário para a sua prosperidade e felicidade, mas sim produzido uma autocracia de fachada democrática, marcada por três aspectos diferentes, mas todos eles igualmente pérfidos.

Em primeiro lugar, a degradação e desorganização de sectores fundamentais para a vida pública, desde a Saúde, a Educação, a Economia e os Transportes à Justiça, a Habitação, a Fiscalidade e a Defesa, as quais espelham, acima de tudo, a gritante incompetência de quem nos tem liderado na organização e na gestão da complexidade e da exigência inerentes ao exercício do poder governativo. Sem qualquer dúvida, estamos perante uma classe política incubada nos aparelhismos partidários, sem obra, sem currículo, sem percurso e sem a envergadura intelectual e a elevação humana necessárias para assumir as responsabilidades que sobre si recaem.

Em segundo lugar, a criação de uma cultura destrutiva de subsidiação, através da qual os partidos que ciclicamente têm dominado a máquina governativa têm empobrecido a classe média (com impostos que atingiram níveis incomportáveis) e procurado comprar, em termos metafóricos, a simpatia e o voto dos indivíduos, das instituições, das fundações e de uma panóplia vasta de pessoas e organizações que insistem em sobreviver à custa das contribuições fiscais alheias, parasitando até à exaustão quem se sacrifica e quem trabalha.

Em terceiro lugar, a corrosiva cumplicidade instalada entre certos grupos económicos e determinada classe política, a qual, sob uma capa espessa de independência formal, tem garantido a proliferação de redes de corrupção, compadrio e enriquecimento ilícito, assim como o uso abusivo dos recursos do Estado em prol de vantagens partidárias, fortunas privadas e instrumentalizações diversas de influências e de canais de decisão, os quais deveriam estar, de forma equitativa e acima de tudo, ao serviço do cidadão, e não de interesses obscuros e privados.

Face a todo este contexto, o qual muito tem beneficiando da apatia da União Europeia (alheia aos princípios humanistas que inspiraram a sua criação e rendida à agressividade selvagem da alta finança), Portugal sente, porventura mais do que em qualquer outro período das últimas duas décadas, a necessidade de uma reforma profunda. Fartos das desigualdades, da mediocridade, dos miseráveis salários, da impunidade, do sistema de cunhas, do desrespeito pela autoridade, da falta de habitação digna, do desumanismo da banca, da secundarização da família, da vilipendiação da nossa História e da constante disrupção dos nossos valores e princípios seculares, são cada vez mais os cidadãos que procuram respostas e lideranças que os ouçam, que lutem por eles, que devolvam ao país a dignidade e o exemplo que os eleitores esperam de quem os representa, que não cedam à tentação do dinheiro fácil, que não adulterem a Causa Pública em prol de esquemas pessoais, que olhem para a política como uma verdadeira oportunidade para servir os outros (especialmente quem mais precisa) e que, longe da hipocrisia que move tantos que pela governação passam em voos rasantes e tardios de exibicionismo e futilidade, sintam e assumam a difícil, mas necessária, missão de mudar.

Durante muito tempo, e para prejuízo de todos nós, este espírito generalizado de insatisfação não levou a nossa sociedade a uma acção prática concreta, situação que inspirou Miguel Torga a tão inteligentemente nos descrever como uma “colectividade pacífica de revoltados”, à qual faltava “o romantismo cívico da agressão”. Num mês em que vamos ser chamados a nos pronunciar sobre o futuro próximo da Região, pergunto-me, como cidadão, se será essa, uma vez mais, a nossa postura. Ou seja, se, apesar de tudo o que temos visto acontecer à nossa volta, com responsáveis claramente identificados, temos mesmo uma ambição quanto à nossa Região e ao nosso país, ou se, pelo contrário, estamos envelhecidos, anestesiados, resignados, como em tantos outros momentos, e, na verdade, só queremos sobreviver a cada dia, até ao fim da crise actual, para poder respirar antes da próxima crise ou do próximo escândalo político ou do próximo esquema de corrupção ou do próximo abuso da Causa Pública em benefício dos bolsos de um qualquer empresário ou governante. Pergunto se, no fundo, com tanta decadência e tanta reforma que urge implementar, deixamos de ter claro o valor da mudança e passámos, simplesmente, a deixar tudo correr porque, afinal, “vai ficar tudo bem”. Não vai. E está nas nossas mãos.