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A invulnerabilidade da História

Pode a História ser reconstruída do presente para o passado? Esta é uma pergunta que tem vindo cada vez mais a ganhar espaço na mente coletiva global. Em 2020, a questão ganhou particular interesse quando, em resposta ao homicídio de George Floyd pela polícia de Minneapolis, muitos revoltosos se uniram com o objetivo de destruir pela força estátuas de personagens históricas americanas no mínimo controversas numa alegada tentativa de destruição do legado “racista”/”colonialista” dos Estados Unidos da América. Tratou-se, na verdade, de uma tentativa de destruição do imaterial através do material. Na altura, este tipo de episódios repetiu-se um pouco por todo o ocidente ao ponto de, até em terras lusas, ocorrer a vandalização da estátua do pe. António Vieira, provavelmente a menos merecedora de tal crime (nenhuma o é), já que a figura que retrata enfrentou os mais altos poderes em defesa dos indígenas do Novo Mundo.

Entretanto, passaram-se três anos e a destruição da História através da iconoclastia parece ter parado. No entanto, nalguns persiste a ideia de que é possível escolher e censurar os episódios da História que não interessa recordar. Parece ser esse o caso do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que pretende levar esta ideologia ao extremo ao querer eliminar o nome “Índia” do mapa mundo.

Para compreender a situação, importa começar por esclarecer que este “berço civilizacional”, como vários o caracterizaram, assumiu três nomes na sua existência: Bharat, Índia e Hindustão, sendo os dois primeiros designações oficiais do país. Bharat é o nome ancestral que surge nos primeiros textos hindús; Índia surgiu no século V a.C. através dos gregos; e Hindustão nasceu quando o país esteve sob o domínio mongol entre os séculos XVI e XIX. É possível que, para breve, o país passe, porém, a ter apenas uma designação.

Esta intenção é inferida a partir dos sinais óbvios que foram dados pela administração indiana durante a reunião do grupo G20, ocorrida no seu país. Mais especificamente, das situações que levantaram algumas sobrancelhas como foram as dos convites para o jantar oficial organizado pela presidente Murmu, que foi neles identificada como Presidente de Bharat, e a placa de identificação de Modi durante a reunião oficial em que se lia “Primeiro-Ministro de Bharat”.

Somando ainda outros acontecimentos recentes similares (como o da mudança de designação de uma rua de nome mongol), concluiu-se que a Índia está a tentar reestruturar a sua história através da eliminação do seu legado mais infeliz. Sobre isto, Modi e o seu mentor ideológico, Mohan Bhagwat, justificam a sua oposição ao nome “Índia” alegando que não passa de uma herança esclavagista britânica e que o nome é usado apenas para que os ingleses o entendam – ambas ideias descabidas e falsas que, contrariamente aos americanos, configuram uma tentativa de destruição do imaterial através do imaterial.

Com este estilo de discurso, torna-se óbvio que, seja a razão aproveitamento político, seja orgulho patriótico, a Índia está a confrontar os demónios do seu passado. Todavia, não será por estar a protagonizar essa luta estoica que as opiniões radicais de Modi e dos seus similares intelectuais passarão a fazer sentido. O próprio Shashi Tharoor, intelectual que não perde a oportunidade para criticar o colonialismo inglês e os atrasos que deixou na Índia moderna, considera que a decisão de usar o nome Bharat não é polémica porque sempre foi um dos nomes oficiais do país, mas abdicar do nome “India” apresenta-se como uma estupidez uma vez que seria perder o direito a um nome internacional cheio de história e de valor construídos ao longo de séculos.

Voltando à pergunta que abriu este artigo, a resposta parece óbvia – não, a História não pode ser mudada por mais que se tente nem por via material nem por via imaterial. Porque as glórias e as crueldades vividas e cometidas foram vivenciadas independentemente do que se faça posteriormente. É através da preservação da História, do bem e do mal, do vivido e do cometido, que podemos aprender e, oxalá, criar um futuro sem os erros do passado. Como disse Bertolt Bretch, aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira é um criminoso.