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Crónicas

Imaculada Conceição

Já não sabe quem somos e vive agora num lar. E foi lá que celebrou os 91 anos, no dia da Imaculada Conceição, a santa que lhe deu o nome

Envelhecer nem sempre significa tornar-se uma avó dos filmes, uma daquelas senhoras simpáticas ou excêntricas, que sabem cozinhar e fazer tricô, que se confundem com o telemóvel ou surpreendem os netos com tudo o que sabem sobre tecnologia. Algumas terão essa a sorte; as outras atravessam a última parte da vida desorientadas e sem saber que dentro da cabeça está crescer uma doença que, no fim, vai roubar-lhes quase tudo.

A minha tia Conceição está nessa metade a quem a demência levou quase tudo. Ao princípio sem se perceber; depois numa revolta inesperada e, por fim, assim, como está hoje, sem saber que fez anos, que as velas e o bolo eram dela, pelos 91 anos e que aquelas duas pessoas éramos nós, os sobrinhos de quem tanto falava quando estava lúcida. “Os meus sobrinhos, a minha sobrinha”, os tesouros mais valiosos que exibia a todos, mesmo que não viesse a propósito.

O processo foi lento. Um esquecimento aqui e ali, detalhes, pensámos. A tia fazia férias e ia todos os anos visitar os amigos do Porto com o mesmo desembaraço. Um dia, quando me pediu para escolher a roupa para ir a um casamento, confessou-me que era a última vez. A mulher independente começava a ceder e, mesmo assim, parecia a mesma, com o mesmo mau feitio e a mesma generosidade. “Leva este troco para comeres um bolo”, dizia-me antes de subirmos para a paragem. Ela fazia questão de ir comigo só para me dizer adeus.

E a tia redonda e loira começou a mirrar, a perder a vaidade. A permanente ao cabelo de três em três meses passou a ser quando se lembrava disso. A memória estava a falhar, mas a tia Conceição tentava proteger-se com lembretes em pedacinhos de papel espalhados pela casa: “a missa é às cinco horas” ou “tenho de ir buscar o pão amanhã”. Ou então telefonava uma, duas, três vezes a fazer a mesma pergunta. Ainda não tínhamos assumido que aquilo era mais do que feitio retorcido.

A tia estava só mais velha e com pior feitio, custava assumir que a cabeça daquela mulher com quem tínhamos crescido se estivesse a afundar na demência. Não queria tomar banho, gritava quando era contrariada e uma vez acertou-me em cheio quando a arrastei para o duche. A casa era o espelho da confusão em que vivia e, todos os dias, ia-se um pedacinho de memória até começar a perguntar pela mãe, pelo pai, pelas irmãs, a procurá-los dentro de casa, no quintal.

Já não sabe quem somos e vive agora num lar. E foi lá que celebrou os 91 anos, no dia da Imaculada Conceição, a santa que lhe deu o nome. Não foi de facto uma celebração, mas teve um bolo e velas e fomos lá, o meu irmão e eu, os dois sem muita esperança. A minha tia tem cada vez menos interesse no que a rodeia e ouve pouco, mas comeu o bolo com tanto gosto que nos salvou o dia e nos fez felizes naquela hora em que partilhámos os laços que nos ligam.