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“Para os efeitos que tiver por convenientes”

Marcelo Rebelo de Sousa confirmou a “intervenção da Presidência da República” no “processo de duas gémeas (brasileiras), num tratamento complexo no Hospital de Santa Maria”, isto na sequência de uma abordagem do Dr. Nuno Rebelo de Sousa, seu filho, que lhe referiu, numa mensagem de correio eletrónico, que “um grupo de amigos das duas crianças gémeas se tinha reunido e estava a tentar a todo o transe que elas fossem tratadas em Portugal”. O Presidente da República diz que despachou o assunto para o Chefe da Casa Civil nos seguintes termos: “será que Maria João Ruela (que era, na altura, a consultora da Casa Civil do Presidente da República para assuntos sociais) pode perceber do que se trata?”. E aqui deixo a primeira reflexão: será este um procedimento normal e admissível?!

Fernando Frutuoso de Melo, Chefe da Casa Civil, “enviou para a Dra. Maria João Ruela que contactou o Hospital de Santa Maria” e que respondeu depois ao Dr. Nuno Rebelo de Sousa. Tudo isto ainda apenas na órbita da Presidência da República. Depois, o Presidente da República confirma que o Chefe da Casa Civil enviou então o “caso” para o Chefe de Gabinete do Senhor Primeiro-Ministro e para o Chefe de Gabinete do Senhor Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, “para os efeitos que tiver por convenientes”.

Sabemos que, “na sequência disso”, o Dr. Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República, terá, depois, reunido com o Secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, que, porém, diz que precisa “de factos e de documentos para poder tentar relembrar” o encontro e o assunto. Entretanto, as gémeas brasileiras terão sido retiradas da lista de recusas do Hospital de Santa Maria e passado à frente de outras crianças que estavam em espera, isto depois da intervenção do Diretor Clínico do Hospital que o terá solicitado à Diretora do Departamento de Pediatria a pedido da Secretaria de Estado da Saúde. É a informação que foi tornada pública.

O Ministério Público investiga o caso deste 7 de novembro, dia da tempestade que levou à queda de António Costa, já depois do Juiz Conselheiro Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ter referido que a “corrupção está instalada em Portugal”. Não me irei pronunciar sobre quaisquer eventuais implicações criminais, até porque desconheço o pormenor dos factos, porém, julgo que não podemos ignorar o que tem vindo a público e que impõe algumas reflexões que aqui deixo “para os efeitos que tiver por convenientes”: O tratamento dado ao caso é idêntico ao tratamento a que tem acesso a generalidade dos portugueses?! É normal o Presidente da República solicitar aos seus assessores uma intervenção desta natureza no âmbito de processos pendentes em instituições públicas?! Podem os portugueses usar o mesmo canal para tratar assuntos pessoais ou de um “grupo de amigos”?! Fazendo-o, poderão contar com a mesma atenção, cuidado e celeridade por parte da Presidência da República?! Ou tal só acontece através do Dr. Nuno Rebelo de Sousa?! Que “efeitos” teve “por convenientes” o Governo que recebeu uma comunicação daquela natureza da Presidência da República?! Que intervenção teve o Governo?! Ainda que não tivesse intenção de promover “vantagem não devida”, o Presidente da República sabia, ou tinha obrigação de saber, não podendo ignorar, que aquele tipo de intervenção, naquelas circunstâncias, seria suscetível de subverter ou inverter o rumo natural do processo ou de levar alguém a fazê-lo?! Mesmo que estivéssemos perante uma situação de inércia do Hospital, seria este o meio adequado de reação?! Podemos tolerar em Portugal o acesso privilegiado à saúde pública?!...

Enfim, são reflexões que me parecem pertinentes e oportunas num país insensível que mergulha numa profunda, e talvez irreversível, crise de valores e de princípios. Portugal não pode ser apenas para alguns.