Leituras do Martinho do Império

O nome rima com vinho por ser o mês de o provar, mas também pobres e o morrer. Será que o populismo religioso festeja mais o vinho que o santo? Afinal conta-se que os seus monges trouxeram a vinha e vinho para os campos do mosteiro para darem este “remédio” aos doentes. Daria que falar a quem há mais de 50 anos se ocupa das implicações do vinho ligado ao morrer e mazelas da essência do vinho de menos saúde que de morte e sofrimento em muitas famílias. Para além das diversas newsletters de organizações científicas ligadas à prevenção do alcoolismo, lembro ainda que S. Martinho também é invocado contra estes problemas do álcool e mortes prematuras.

Enfim, a vida de S. Martinho tem muitas leituras e bons exemplos. Uma delas condiz com a etimologia do seu nome do deus da guerra, Marte, que o pai lhe quis dar. Foi militar ao serviço do Império romano colonialista que dominou quase toda a Europa e parte da Ásia. Fez de muitos milhares que não alinhavam com as suas leis, mártires cristãos. Muitas dessas leis romanas, não todas, foram modelares e em grande parte ainda nos regem e são ensinadas nas faculdades de direito. Martinho teve que ser guarda imperial por lei do imperador e exemplo do seu pai. Será que os wokistas de turno (rima com extremistas) ainda não se alucinaram para destruir hoje tudo o que é romano feito por esses colonialistas? Mas parece que as estátuas e cerca de quatro mil igrejas do santo, só em França, seriam poupadas; por S. Martinho ter nascido na Panónia em 316, três anos depois de o império ter deixado o colonialismo violento.

Outra leitura da sua vida é a atenção aos pobres. Ainda não era baptizado, mas já com formação recebida em Pavia, Itália, e sendo militar em Reims, fez o que Jesus pediu para os seus ouvintes fazerem aos pobres e se prepararem para o julgamento final na sua segunda vinda. Martinho não se iria surpreender com o juízo final do Evangelho de S. Mateus (Mt 25, 31-40), se fosse chamado a juízo logo após ter partilhado metade do grande manto, de guarda imperial a cavalo, com um mendigo que encontrou a morrer de frio. Conta-se que logo vieram dias de sol que seriam o começo do Verão de S. Martinho. E ainda se conta que no dia seguinte terá recebido de Jesus o capote inteiro. O certo é que pelos caminhos à beira do rio Loire, já monge e bispo, continuou a ser um coração misericordioso e caritativo para com os pobres de tantas terras da Gália. Não será que celebrá-lo como santo do vinho diminui a bondade do seu exemplo?

A sua vida pode também lida em chave da oração, como fundador em Ligugé do primeiro mosteiro com data certa de 36. Atraiu muitos imitadores e monges à vida monacal dedicada à oração que o Papa está a solicitar na preparação do Ano do Jubileu da Redenção de 2025. S. Martinho tornou-se um modelo para o século IV e todos os tempos, no Ocidente, e ainda antes de S. Bento a associar a vida dos monges à oração e ao trabalho intelectual e agrícola em que se incluía a cultura da vinha.

Outra página da sua vida, muito actual em tempo de guerras e contendas religiosas, é a de pacificador. Já com 80 anos e enfraquecido, não disse que não ao ser solicitado para deixar Tour onde era bispo, e ir de barco pacificar o clero numa Igreja local distante, em Candes. Foi bem sucedido em fazer a paz, mas o seu estado de saúde agravou-se e o fim da sua vida terrena e o seu morrer chegou e ali mesmo adoeceu gravemente. Perante os pedidos dos seus confrades, em choro; para não os abandonar, voltado para o Senhor, respondeu: ”Senhor se sou necessário ao teu povo, não recuso sofrer. Que se faça a tua vontade”. Aceitou a vontade de Deus “sem medo de morrer, nem recusar viver”. Cheio de febre, em oração e a pedir que o deixem olhar o alto, passados alguns dias, entregou-se ao Céu, diz o biógrafo seu contemporâneo, Sulpício Severo (cf.Paul Antin,1964 in https:// www.persee.fr/doc/rea _0035-2004_1964_num_66_1_3716). E até neste modo de morrer é um exemplo coincidente com o mês de novembro de oração pelos falecidos; e também com o Dia dos Pobres celebrado a 19 de novembro.

Por fim há mais um episódio para ler. Após a morte de Martinho rebentou uma pequena guerra entre cidades para se apoderar do seu corpo porque todos o queriam nas suas terras, devido à sua santidade e milagres. Os de Tours já tinham chegado para isso. O seu corpo era um tesouro por ter sido santo. E assim enquanto uns dormiam os do grupo de Tours o passaram, à calada, por uma janela para barco. Quando os outros acordaram já era tarde. E o seu túmulo lá está na sua basílica em Tours.

O Papa Francisco chama-lhe “Grande Pastor da Igreja que se distinguiu pela caridade evangélica para com os pobres e os marginalizados”. E pede “que o seu exemplo nos ensine a ser sempre mais corajosos na fé e generosos na caridade” (11 nov 2020). Também poderia ser um dos patronos do dia dos pobres.

Funchal, S. Martinho e o dia dos pobres, 19.11.2023

Aires Gameiro