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Análise

Uma culpa colectiva

Os que pegam lume à floresta que nos distingue merecem castigo. Mas não são os únicos

Os equívocos atingiram proporções alarmantes na última semana, como se os incêndios que tudo levam nascessem por geração espontânea, por intervenção do além ou por causa das alterações climáticas. Como se pelo facto de serem obra de um ou outro incendiário revoltado com a sociedade e com problemas pessoais de dimensões desconhecidas desculpassem actos e omissões quotidianas em cada lugar que contribuem para um drama colectivo frequente. Como se a consciência de quem optou deliberadamente por deixar arder pudesse ficar mais sossegada com a exibição pública do bode expiatório. Como se os terrenos por limpar por essa Madeira dentro nada tivessem a ver com a desertificação em marcha, patrocinada por um modelo de desenvolvimento que não fixa populações e provoca o êxodo rural.

Se é certo que a resiliência dos madeirenses evitou estragos maiores, que o meio aéreo, embora escasso quando existem várias frentes activas em simultâneo, foi determinante no combate, que os bombeiros tudo fizeram para defender vidas, não é menos verdade que também houve negligência, demora, desleixo e descoordenação. Os relatos trazidos pelos repórteres que ouviram o povo dão conta de falhas detectadas a montante, no ordenamento do território ou na gestão da floresta com invasoras a mais, mas também nas operações de ataque ao fogo, as mesmas em que os autarcas se revelaram bem mais ágeis do que os outros protagonistas políticos com responsabilidades acrescidas e em que o tempo prolongadamente quente fora de época não explica tudo.

Os fogos colocam novamente à prova a capacidade de governar a Região, de liderar a Protecção Civil e de perspectivar o futuro. Mas também mostram haver gente dita séria de vários quadrantes a tentar fazer política com a desgraça não desejada, ora optando por um aproveitamento descarado das circunstâncias, ora sacudindo a água do capote.

Não é com sopros oportunistas que se apagam fogos, nem é esticando a corda eleitoralista que a água brota com maior pressão das mangueiras. Mais valia que nada dissessem os que passaram legislaturas acomodados nesta matéria e agora quiseram dar um ar da sua graça, com a habitual narrativa delinquente e falta de bom senso.

Este não é o tempo indicado nem para soltar foguetes, nem para apanhar as canas. É tempo de agir, por exemplo, informando com seriedade, mesmo que os balanços oficiais não sejam frequentes e regulares e estando junto de quem sofre, durante o qual vimos com orgulho, cidadãos empenhados, bem mais eficazes do que alguns eleitos que se julgam importantes, intervindo no combate às chamas, sendo solidários com os mais frágeis, abrindo a porta de casa a quem teme o pior e pedindo bens essenciais para que sejam satisfeitas necessidades imediatas. E também vimos a determinação daqueles que com colete, farda ou divisas ou sem camisa, galões e pretensões nos protegem da incúria humana e do facilitismo institucionalizado.

Quando a tormenta passar, esperemos que em breve, há muito para reflectir. Aí sim será altura de cobrar promessas não cumpridas e sobrancerias inacreditáveis, mas também de definir enquadramentos e opções estratégicas em nome de uma maior prevenção e monitorização, sem medo de recorrer à tecnologia e aos saberes multidisciplinares. Até lá, mesmo sabendo que os incendiários de toda a espécie não alinham em causas nobres, o que nos deve mover a todos é salvar pessoas, animais e bens, mas também a honra que eventualmente resta dos que se perdem com posturas ridículas.

É elementar que os efeitos da tragédia e os danos por esta provocados não perdurem no tempo, sobretudo numa ilha que depende de gente para reerguer-se e da natureza para afirmar-se como destino de excelência. Exige-se por isso medidas pensadas e robustas e não os remedeios de circunstância, que sendo louváveis em situações de emergência não acautelam o futuro nem evitam que o filme dantesco, mesmo sem labaredas, se repita. Há 14 desalojados pela tempestade Óscar que passados mais de quatro meses continuam sem tecto, ‘perdidos’ entre Funchal e Lisboa. Há gente que passados 13 anos do ‘20 de Fevereiro’ ainda não tem o sossego, a casa e a dignidade perdidas então.