Crónicas

Ano Novo

Viver o momento, seja uma manhã de sol ou um dia de chuva, um almoço em família ou que for que nos deixa felizes

A última vez que vi o fogo do fim do ano no quintal da minha tia Alice foi há 20 anos, mas pareceu-me estranho. A mesa da sala, com os pratinhos de azeitonas e quadradinhos de queijo, estava como que encolhida, embora fosse a mesma. Havia espumante para o brinde à meia noite e a minha tia tinha ao lume uma canja para depois do fogo, senti o cheiro ao chegar. E, apesar de ter sido assim, não era como antes, no tempo em que, no Laranjal, a passagem de ano se fazia em família e nas casas com melhor vista para a cidade.

A vida tinha mudado. O Laranjal, naquele início do século, era já outro e eu percebi, pela primeira vez, que os meus tios estavam a envelhecer. A família, as pessoas com quem tinha crescido, estava a mudar, a seguir outro caminho onde eu não entrava. Nem a vista era bem a mesma, havia mais casas, mais anexos nas casas e vizinhos novos. E, talvez por ser 31 de Dezembro, dia em que se pensa muito e se faz balanços, tudo se tornou muito nítido e real. A minha infância, o que ainda havia dela naquele lugar, estava a desvanecer.

Eu tivera a ilusão de que aquele sítio, aqueles metros de caminho que ligavam as casas da minha família, seria eterno e impermeável àquela vontade de trocar tudo pelo que era novo e moderno. Era um engano, uma utopia e uma impossibilidade. E até o meu pai alterara a disposição dos móveis, fizera obras que tive dificuldade em encaixar. A velha casa do Laranjal, entendi com clareza, era uma memória, algo que vivia na minha cabeça e que eu revisitava nos sonhos. Ainda hoje quando sonho que estou de regresso a casa é sempre aquela outra, a casa das memórias.

E foi esse confronto que me abalou nesse último dia do ano, há coisa de 20 anos, em casa da minha tia Alice, quando tudo me pareceu mais pequeno, mais sombrio e mais frio do que me lembrava. O que foi igual, que se manteve sem um beliscão, foi o calor com que me receberam e que me ficou, assim, como se fossem fotografias. O sorriso do meu tio Humberto às voltas com o saca-rolhas para abrir a garrafa de espumante e a minha tia, com o cabelo bem penteado, a servir canja e sandes pequenas de queijo e galinha num ambiente alegre e com a casa cheia de luz.

Depois houve abraços no quintal assim que o ano mudou no letreiro de São Gonçalo. Eu não sabia que seria última vez, achei que tínhamos tempo. É o que pensamos aos 30 e poucos, que o futuro é grande e dará para tudo, até para repetir a passagem de ano em casa da tia Alice. Nem sempre dá, entendi isso anos mais tarde quando a morte começou a levar, uma por uma, as pessoas com quem cresci. Eu tenho essa última passagem de ano, quando começaram a envelhecer e numa altura em que o Laranjal já não era o mesmo da minha infância.

E, por isso, este ano, entre os balanços e as promessas, deixo a minha decisão – entre várias como ir ao ginásio, fazer dieta e poupar dinheiro – que é de viver o momento, seja uma manhã de sol ou um dia de chuva, um almoço em família ou que for que nos deixa felizes.