Crónicas

Os primos embarcados

A emigração fizera o mesmo a todas as famílias, dividira, trouxera saudades e aquela mágoa

A história das férias grandes no Laranjal não se pode contar sem falar dos primos do lado da minha mãe, que eram muitos e, ano sim, ano não, apareciam para ver a Celina, tão bem falada e alegre. Dava-lhes saudades e a prima era parte da infância e da memória de uma ilha que tinham deixado novos para ganhar asas na Venezuela, na África do Sul e no Brasil.

Os primos embarcados apareciam sem aviso e acenavam sorridentes da porta do caminho, enquanto a minha mãe desesperava. O senhor António dera pressa ao bordado e não lhe sobrara tempo para lavar a loiça do almoço. Lembro-me de a ver a arrumar as linhas, o dedal e a tesoura já a pensar se havia umas broas de mel e umas azeitonas para servir, que ficava feio não ter o que oferecer.

Os primos subiam os três lances de degraus e já a porta da sala das visitas estava aberta e a bandeja de casquinha, comprada no Baganho, avançava com os copos bonitos, o licor e o bolo de mel partido em pedacinhos numa taça de vidro trabalhado. A minha mãe podia resmungar, mas recebia bem e ninguém lhe via azedume. Então a família, as primas e os primos?

E não havia silêncios incómodos, dava a impressão de os ter visto no dia anterior. A minha mãe conhecia bem a arte de acolher. E, aqueles desconhecidos sentados na sala dos sofás e da alcatifa, admiravam o quadro grande, o cinzeiro de pé e perguntavam-lhe pela saúde, que era frágil e de crises. A minha mãe sorria, lembrava histórias de quando eram novos e se juntavam todos em casa do meu avô.

A alegria desses tempos esmorecera. A emigração fizera o mesmo a todas as famílias, dividira, trouxera saudades e aquela mágoa. As minhas tias e a minha mãe falavam do Emanuel, da Zélia e do João – os primos da África do Sul – como se ainda ali estivessem, novos, a correr pela fazenda. E era como voltar aos anos 50 e ter connosco as duas primas freiras – a Manuela e a Conceição -, mais o Cipriano, que era frade e o Francisco que vivia na Venezuela.

E, de um certo modo, nem a minha tia Gabriela tinha partido para o Brasil, onde, na verdade, ficou por mais de 50 anos. A primeira vez que a vi era já uma velhinha, uma senhora brasileira a quem as irmãs pagaram uma viagem a casa. Quando chegou a minha mãe já tinha morrido e até essa reunião foi, de certo modo, inquinada por isso de estar embarcado por tantos anos. Embarcar era o nome que o povo dava a emigrar.

E por isso, mesmo com a pressa para entregar o bordado na casa, a minha mãe dava-se ao luxo de se sentar nos sofás da sala das visitas e de acolher aqueles primos. Não eram desconhecidos, eram pessoas da infância da minha mãe e das minhas tias, gente desse tempo ao qual pertencemos como se fosse um país. Lembro-me de que me pareciam estranhos, falavam um português esquisito misturado com inglês ou com castelhano e não percebia a cerimónia de abrir a sala das visitas e da bandeja com bolo e os copos bonitos.

Não tinha idade para saber o que é saudade, o que é nostalgia, nem como a memória nos define e torna importantes as pessoas que fazem parte de passado que é a nossa história.