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Crónicas

Mais vale nunca

Os amigos mandaram-me postais de Itália, cartas do Minho e de Macau, enquanto eu ouvia o Rui Reininho cantar que “mais vale nunca mais crescer” e via passar os dias entre o sofá da sala e o quintal e dependia da minha mãe para tomar um duche sem escorregar.

A música dos GNR tocava muitas vezes na rádio no verão em que, ao falhar um degrau, parti o meu pé esquerdo e o médico fez-me uma bota de gesso até ao joelho. Depois mandou-me para casa com duas canadianas e ordem para descansar e esperar, que o osso estaria em condições a meados de Setembro. E a praia? O médico sorriu-me, a praia haveria de estar no mesmo lugar no ano seguinte.

Lembro-me de ter subido a custo a entrada por causa da dor e da revolta, não era justo. O azar parecia ter feito um acordo com o diabo para nunca falhar um encontro e deixar-me naquele limbo num verão que era para ser memorável. O meu primeiro verão com subsídio de férias e planos para conquistar a Europa com um saco de viagem no porta-bagagem do Peugeot 205 que nos tinha levado ao Algarve no fim do curso.

Os amigos mandaram-me postais de Itália, cartas do Minho e de Macau, enquanto eu ouvia o Rui Reininho cantar que “mais vale nunca mais crescer” e via passar os dias entre o sofá da sala e o quintal e dependia da minha mãe para tomar um duche sem escorregar. Não estava a ser um ano fácil aquele, sentia-me agrilhoada pelas ordens dos médicos e todos repetiam que o importante era ficar bem, colar o osso, curar o linfoma. Depois, se tivesse paciência, teria o futuro e o mundo.

E aqueles dias, aquele presente? Os médicos sorriam, era melhor pensar no ano seguinte, nos muitos anos que estavam para chegar e em que teria os dois pés para andar e correr, teria o corpo inteiro para ir à praia e viajar. O segredo era esperar e não pensar, esperar e não perder a esperança, mas quando me livrei a da bota de gesso e do linfoma as pessoas e as coisas já não estavam no mesmo sítio. Uma amiga partira para Macau; outra fora estudar cinema para Praga, alguns casaram.

E eu estava no lugar do sobrevivente, o ponto a partir do qual teria de me reconstruir. Não era bem a mesma pessoa que recebera a notícia da biópsia e que falhara o degrau ao descer uma escada, tinha avançado oito meses e não podia servir-me desse tempo para seguir em frente. O maior desejo de um sobrevivente é voltar à vida e, às vezes, isso obriga a engolir os traumas, a não dar importância aos estragos, nem aos pesadelos, que tantos anos depois, ainda tiram o sono.

Foi desse lugar que parti em 1994, um lugar parecido com aquele em que estamos agora. Nenhum de nós é bem o mesmo que era em Março e todos somos sobreviventes a voltar à vida.

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