>
Artigos

Pesos, medidas e Heróis

A humanidade vai ultrapassar, como sempre o fez, mas não vai vencer, porque vai continuar a ser humanidade

Ora bem, já todos ouviram falar em controlo de peso, seja porque se inicia uma dieta, seja porque se quer controlar este indicador de saúde. E para fazê-lo bem, há que se pôr em cima da balança sempre mais ou menos à mesma hora e com a mesma quantidade de roupa (nenhuma, preferencialmente).

Só desta forma é possível haver termos de comparação fiáveis. E esta máxima aplica-se em qualquer situação que necessite de comparação de dados.

Nesta pandemia Covid 19, infelizmente temos visto muito alho a ser comparado com bugalho, isto é, realidades diferentes, em culturas sociais diferentes, a serem comparadas como se fossem iguais. Obviamente o resultado final não é, não pode ser fiável. É preciso que o peso seja medido sempre mais ou menos à mesma hora e com a mesma quantidade de roupa. Comparar a realidade chinesa, italiana ou americana, com a realidade portuguesa é o mesmo que comparar o peso sem roupa e o peso com um sobretudo vestido.

Agora alguns números para percebermos o que poderia acontecer se não houvessem as tais medidas entretanto decretadas, partindo de uma taxa de letalidade de 6% (apesar de em Portugal estar nos cerca de 3%):

Em cada 100 pessoas infectadas, 6 podem morrer.

Em cada 1000 pessoas infectadas, 60 podem morrer.

Em cada 5000 pessoas infectadas (a população do Porto Santo), 300 pessoas podem morrer.

Se considerarmos que cerca de 60% da população poderia vir a ser infectada, isto significa que cerca de 3000 pessoas no Porto Santo poderiam ser infectadas, e que destas, 180 pessoas poderiam morrer. Imaginem morrerem 180 pessoas no Porto Santo nos próximos 6 meses (30 por mês). Todos nós iríamos conhecer alguém. Pode ser um amigo, a Mãe, o Pai, uma irmã ou um irmão, podemos ser nós, que sabe? Agora é só fazer contas de multiplicar para se chegarem aos números que poderiam vir a ser possíveis na Madeira e em Portugal. Poderíamos ter este cenário se não houvessem as medidas de contenção da contaminação social.

Tenho visto muito por aí a ideia de que:

“a humanidade vai vencer o vírus”.

Não, não vai.

A humanidade já foi vencida pelo vírus!

A humanidade não vence, nunca, o que a natureza lhe dá como provação.

A humanidade não venceu a peste negra.

A humanidade não venceu a gripe espanhola.

A humanidade não venceu a tuberculose.

A humanidade não venceu a varíola (já foi considerada extinta, mas alguns iluminados membros da humanidade resolveram que a vacina não era necessária e a varíola voltou!)

A humanidade ultrapassou todas estas provações que a natureza lhe pôs no caminho, mas nunca as venceu.

Agora, também a humanidade não vai vencer o vírus SARS CoV-2.

Vai ultrapassá-lo. Através da tecnologia de que dispõe vai arranjar uma vacina que vai conferir imunidade até que alguns iluminados membros da humanidade se convençam de que a mesma já não é necessária.

Há quem diga que tudo vai ser diferente, eu creio que nem por isso. A humanidade vai continuar humanidade tal como a conhecemos.

Mas há coisas que espero que mudem mesmo.

Vai ter que mudar a importância (ou falta dela) que é atribuída a todos os cientistas que investigam as vacinas e os medicamentos necessários para que se possa ultrapassar esta crise, conferindo-lhes valor, reconhecendo que valem mais do que qualquer futebolista ou político que se acham no direito de valer milhões quando na realidade pouco valem.

Vai ter que mudar a forma como são encarados os profissionais de saúde quando dizem que precisam este ou aquele aparelho, este ou aquele medicamento, e que os políticos e gestores hospitalares dizem não ser necessário, sem nunca terem sentido na pele o que é ter um doente à sua frente.

Vai ter que mudar a forma como se relativiza a necessidade de profissionais quando se diz que o Sistema ou Serviço, ou como queiram chamar, precisa, para que não sejam olhados como heróis que não querem ser. O que querem é praticar a sua profissão com a dignidade que merecem.

Os heróis praticam actos extraordinários numa altura de aflição localizada no tempo e no espaço, e neste contexto são verdadeiros heróis.

Mas o que temos assistido tem sido ver profissionais de saúde a fazerem o que sempre querem fazer, que é dar o melhor de si para poderem tratar quem deles necessita, sem pedirem que lhes reconheçam a sua heroicidade, pois é por isso que estão na profissão que escolheram. Não querem ser melhores nem piores que os outros, querem ter uma palavra a dizer quando um gestor lhes quer impor a forma como devem tratar um doente.

Cabe aos profissionais de saúde definirem como é que se deve fazer e cabe aos gestores, hospitalares ou políticos, encontrar as melhores soluções para o fim em vista, como cabe aos juristas saberem como gerir a justiça ou aos militares como gerir a defesa nacional. Nunca se viu um Ministro da Justiça não ser jurista, mas já vimos juristas a serem ministros de tudo!

Vai ser uma questão de tempo. Precisamos de ter pesos fiáveis para saber que medidas tomar, para que não seja necessário criar heróis que a única coisa que querem fazer é trabalhar com eficiência e com os meios que acham ser os mais adequados.

A humanidade vai ultrapassar, como sempre o fez, mas não vai vencer, porque vai continuar a ser humanidade, com todos os defeitos e virtudes que sempre teve desde que é humanidade.

Vamos ultrapassar, mas sem ideias de que há que vencer a todo o custo.

Ultrapassar é só uma vitória numa batalha.

Se não aprendermos a lição que a natureza nos quer dar, não ganharemos qualquer guerra, pois a natureza é muito mais forte do que a humanidade julga.

Fechar Menu