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Crónicas

Só para beber um café

E não é esse lugar bonito, de pessoas de cabelos brancos, calmas e serenas, satisfeitas com os anos e gratas à vida

Quando isto começou – e parece que foi há muito – preocupava-me a doença e os estragos que ia fazer a tudo, à nossa vida de todos os dias. Às coisas simples como o prazer do meu pai que, doente oncológico e, por isso, pessoa de risco, deixou de ter. Não fosse o cão e os dias seriam ainda mais solitários, a ver passar os poucos carros e os vizinhos nos passeios a pé. Às vezes, queixa-se, precisa de mexer as pernas. A velhice é uma camisa de forças.

E não é esse lugar bonito, de pessoas de cabelos brancos, calmas e serenas, satisfeitas com os anos e gratas à vida. Mesmo que saiba por ouvir nas notícias, ao meu pai custa-lhe não ter o passeio ao fim da tarde, quando veste a roupa de sair e passa a água no cabelo. Lembro-me de o ver o meu lado, na paragem, com ar de actor dos filmes a preto e branco, digno e ainda dono de si, dos seus pequenos prazeres.

Sei que, às vezes, até eu me surpreendo com aquele senhor de 83 anos, para quem a vida nunca foi fácil. Não é uma maneira de dizer as coisas, não foi mesmo simples ou fácil e começou numa casa pobre, com seis irmãos, um morreu ainda criança e ele, o mais novo, foi trabalhar aos 10. As melhores memórias são da tropa em Mafra, de quando esteve para ir para a Índia e da noite em que, por causa da gripe asiática, carregou camaradas para a enfermaria.

Ele não, ele aguentou a asiática, não é de ter gripes, diz que foi das vacinas que levou quando esteve quase, quase a fazer aquela viagem a contornar África até chegar a Goa. E, depois, sorri: “nem imaginas o que já passei”. Eu não imagino, não sei o que sofreu nas obras, não posso mentir. Eu do meu pai tenho o melhor, o homem que corria para casa para ver a filha acabada de nascer, que lhe trouxe um búzio para ouvir o mar e que a ensinou a distinguir as estrelas no céu.

Não foi sempre perfeito e a vida trouxe muita amargura, perdeu a minha mãe e depois a minha madrasta e, agora, cumpre com um rigor espantoso as ordens da doutora que trata do cancro, de quem gosta muito e a quem repete sempre que fará tudo o que disser. Vive agora dos pequenos prazeres. Ou vivia. Gostava tanto de ir ao café, trocar dois dedos conversa com os conhecidos, todos mais ou menos como ele, com histórias semelhantes que, lá por cima, a vida era ainda mais complicada há 70 ou 50 anos.

Sobra-lhe o jardim, a galinhas, a fazenda onde planta alfaces e couves, onde colhe o que vai dando, mas ficar sempre em casa, com poucas visitas, com menos gente para falar custa, custa mais do que eu sou capaz de imaginar. E sei que, nos próximos meses, quando a vida começar a reabrir será ainda mais doloroso não vestir a roupa de sair e passar água no cabelo como se fosse um actor dos filmes a preto e branco só para beber um café.

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