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O vírus do medo

A angústia e a ansiedade estão aí, mas o olhar cristão é sempre o da Esperança

Neste tempo sem tempo, em Portugal e no Mundo, subitamente, estamos todos mergulhados num estranho filme de ficção científica, que nos consome pelo medo, pelo cansaço, pela angústia, pela incerteza. Por nós e pelos outros, todos aqueles que continuamos a amar e a abraçar sem poder amar a abraçar. Nesta guerra de multas batalhas em que o tempo é nosso inimigo, em que a luta nos isola e nos une. O nosso adversário é forte e invisível, ataca com muitas forças, algumas invisíveis ou mesmo desconhecidas. Os cisnes negros tal como descreve Taleb, têm a capacidade de mudar sociedades inteiras e/ou acelerar mudanças e agimos como se pudéssemos prever acontecimentos históricos ou ainda pior, como se pudéssemos alterar o rumo da história. Mas há outros perigos. Neste pesadelo pandémico cresce o sonho do populismo nacionalista que defende o fecho de fronteiras, o isolacionismo, restrições à mobilidade. Que é profundamente anti europeu, racista, xenófobo, que se alimenta do medo irracional contra a imigração, que alegadamente rouba empregos como aumenta o preço de bens e serviços. Para estes, também, o novo corona vírus é uma oportunidade de mudança.

Não podemos esquecer também que se por um lado, a informação deva ser dada para manter a calma, por outro, é preciso também admitir claramente a gravidade da situação.

Ao longo da História, as epidemias obrigaram os humanos a enfrentar as grandes questões da vida e da morte, no nosso lugar no mundo e da nossa relação uns com os outros, como espécie, e como planeta. As epidemias são uma categoria de doenças que parecem surgir como o espelho no qual os humanos projectam a sua verdadeira imagem. Reflectem também a nova relação com o ambiente – o ambiente construído, que criámos, e o ambiente natural, que responde. Mostram a relação moral que temos uns em relação aos outros como pessoas, e estamos a ver isso hoje.

As questões sociais atravessam, também muitas vezes de forma profunda estes momentos. Curiosamente, na actual pandemia de Covid-19, a questão das crescentes desigualdades sociais também surgiu em pano de fundo, com alguns artigos de imprensa a revelar como os mais ricos estariam a viajar nos seus aviões privados e a refugiar-se nos seus bunkers isolados no mundo – a ideia que o dinheiro poderia comprar uma (ilusão de) protecção quando o vírus, se faz alguma descriminação é por idades e não por estatuto social, ao matar sobretudo os mais velhos ou de saúde frágil.

As cicatrizes que o medo irá deixar nas comunidades serão determinantes no nosso futuro colectivo. Uma crise é sempre reveladora das nossas fraquezas e das nossas capacidades. A margem para acreditar que as nossas capacidades irão prevalecer sobre as nossas fraquezas é muito curta, mas não devemos esquecer que o medo quase nunca foi bom concelheiro.

É tempo, pois, de prudência, não de pânico. De ciência, não de estigma. De factor não de medo.

Para além de constituir uma crise de saúde pública o vírus está a infectar também a economia mundial. Os mercados financeiros foram assolados pela incerteza. As cadeias globais de abastecimento foram perturbadas. Um investimento e o consumo caíram, constituindo um risco real crescente de uma ressecção global. Mais do que nunca os governos devem cooperar para capitalizar as economias, expandir o investimento público, promover o comércio e assegurar apoio às pessoas e comunidades mais afectadas pela doença, ou mais vulneráveis aos seus impactos económicos negativos, incluindo mulheres, que muitas vezes suportam um peso desproporcional na prestação de cuidados. Uma pandemia evidência a interligação da nossa família humana. Impedir a propagação da Covid-19 é uma responsabilidade que deve ser partilhada por todos. Se as coisas correrem mal, vamos ter um problema de desarranjo institucional e político. Mas, pelo contrário, podemos acreditar na convicção no primeiro ministro italiano que nos diz: “Em breve, vamos poder voltar a abraçar-nos”. Esta frase de Conte é bonita e arrepiante porque de facto as pessoas não sabem quando é que vão poder voltar a abraçar. É possível amarmo-nos, conhecermo-nos, colaborarmos e adiar-nos por via virtual... é efectivamente possível transformarmos radicalmente a nossa sociabilidade e os nossos afectos mas ao contrário do vírus acredito que o condicionamento pelo medo, tem os dias contados. Somos feitos de tal maneira que, mesmo nas circunstâncias mais graves, conseguimos recuperar o humor e a vida social.

A angústia e a ansiedade estão aí, mas o olhar cristão é sempre o da Esperança. Há uma confiança que Deus criador de todas as coisas, não pode deixar de as criar para o bem. Tudo o que possa contrariar isto é visto como uma passagem temporária e não definitiva. Mas este olhar de Esperança sobre a realidade só é possível para quem não parte esperando que o mundo seja perfeito e para quem não desconfie da imperfeição como se ela não pudesse ser ponto de partida das coisas.

Se este momento pode servir para alguma coisa é questionarmos o que vivemos sem questionar. É o maior básico em filosofia: o aprender a morrer. Por é na sua relação com a morte que nos constituímos enquanto indivíduos.

O filósofo José Gil interrogava-nos à dias, com a sua autoridade - “que podemos fazer, nós que nos fechamos em casa, e que não queremos que o auto-isolamento se torne apenas uma defesa egoísta da família, numa atitude que reforça afinal, o corte com a comunidade?”

É preciso, primeiro combater o medo da morte. Para tanto, dois requisitos essenciais, a recusa da passividade e o conhecimento do” inimigo”. Quanto mais activos, mais aptos, mais fortes para afastar o medo. Se bem que o medo acorda a lucidez, e neste sentido possa ser benéfico, sabemos que ele encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo, limitando o universo a uma bolha minúscula que nos aprisiona e nos confunde.

É contra a tendência a sermos capturados por um tal sentimento de medo que é preciso lutar – precisamente mantendo-nos activos e preocupados com os outros e a vida social de que fazemos parte.

Confinados aqui, onde estamos ainda é possível ver claramente. Fechados em casa, vemos, lemos e ouvimos. Aguardamos.

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