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Crónicas

Os dias do vírus (II)

22 de março

Dolores Aveiro é de tal modo um tesouro nacional que a SIC esteve perto de colocar legendas na Bárbara Guimarães. Por uma horinha, lembrou-nos da candura, da alegria, do carinho e da decência que a tornam num ícone bem português – e madeirense – de resistência.

Ela própria tem um dom.

25 de março

Da Madeira chegam notícias preocupantes: a de uma mulher a quem se diagnosticou COVID-19 como a um leproso bíblico; a de profissionais de saúde que foram intimidados pelos condóminos do prédio para onde se mudaram durante o estado de emergência; a de nomear infectados nas redes sociais e na comunicação social, ‘para impedir que andem aí na rua’.

Há quem julgue que estas tentações medievais da escola da peste ajudam a manter a população a salvo. São insensíveis, claro, ao argumento de que isso é vender a alma para salvar o corpo. Talvez não sejam ao seguinte: maltratar doentes é o primeiro passo para que não se identifiquem, e para que a doença avance, silenciosa, nas brechas do desespero.

O COVID-19 é grave, mas não é mais grave do que as coisas abomináveis que se fazem em seu nome. Em Espanha, à chegada de Cádiz (um enclave perto de Gibraltar), apedrejaram um autocarro de idosos infectados, que chegava para se tratar. Noutras províncias, há relatos de velhos a fugir dos lares, aterrorizados pelo quarto que partilhavam com cadáveres a quem ninguém acudiu.

Com que direito esconjuramos os doentes, se é provável que todos apanhemos COVID? E os profissionais de saúde, que nos vão tratar se necessário? E os velhos, que são a face visível e trágica de uma doença provavelmente inofensiva para quase todos os outros? Se é para aqui que vamos, mais vale perder o medo de apanhar a doença. Antes uma sociedade sem o sentido do olfacto do que uma sociedade sem o sentido da vergonha. Se a Idade Média está assim tão orgulhosamente presente, esgueire-se por aí algum Renascimento: ‘os cobardes morrem muitas vezes antes da sua morte; os valentes não provam a morte senão uma vez’. É mesmo assim.

26 de março

Surgem aos poucos os alertas para a insuficiência dos apoios do Estado e para a importância de retomar a actividade. São ainda silenciosos e silenciados, acusados de “pôr o dinheiro à frente das pessoas”.

Sucede que a pobreza também mata, e pode matar mais que a COVID-19. O fim deste mês de paragem, empobrecimento e desemprego galopante reserva uma bomba, que pode convidar à insurreição e até à violência. Falta pouco para interiorizar que ficar em casa também é uma agressão. E falta ainda menos para admitir que a escolha não é entre pessoas e dinheiro, mas entre pessoas e pessoas.

Com que presunção se finge que é fácil decidir?

27 de março

O Ministro das Finanças holandês terá sugerido que Espanha devia ser investigada por não ter meios para enfrentar o COVID-19. António Costa disse que a afirmação era “repugnante”. E logo saltaram portugueses em defesa do holandês. Alegam que “Portugal não estava preparado para esta crise”, por estar muito “alavancado” no turismo e numa política de cativações.

Não lhes passa pela cabeça que uma catástrofe natural afecte os povos sem um lastro de culpa ou de demérito. É como se esta crise de devesse a uma irresponsabilidade particular. Como se alguém estivesse “pronto” para ela. E como se não estivéssemos todos “alavancados” em qualquer coisa, começando pela História, posição geográfica, limitações e apetências naturais, que em Portugal explicam, por exemplo, o papel cimeiro do turismo na criação de riqueza.

Parece economia, mas é uma forma de ética: quem não trabalha, ou quem não trabalha bem, merece o castigo do Mercado, na verdade o representante terrestre de uma ordem divina. Este raciocínio, que parte de um cisma com 500 anos, é talvez a raiz da feíssima discussão que houve no Conselho Europeu.

Essa parte até se percebe. O que não se percebe é que portugueses repitam estas sentenças como se fossem só uma boca para o Dr. Centeno. Não são. São uma boca para um lastro de séculos, em que eles próprios participam e que explica, entre outras coisas, porque é que as nossas sumidades estudaram na Universidade Católica e não na Universidade Protestante.

Em 2009, entendia-se que o contribuinte de Düsseldorf ou de Roterdão preferisse esquivar-se às dívidas de uma gente pródiga, desorganizada e remota. Mas nisto, que bate aleatoriamente, e depende de códigos e culturas de lazer, de toque, de beijo, e até de convívio com avós?

António Costa usou o adjectivo certo. Esta é uma ameaça existencial à União.

29 de março

Hoje fazem anos o meu irmão e o meu Pai. É a primeira vez que passamos este dia separados.

Há um ano, nos 30 do Francisco, organizámos um arraial na Ponta do Sol. Vieram italianos, ingleses, continentais e madeirenses, companheiros de uma vida e de uma carreira internacional, que hoje prossegue nos Estados Unidos. Bebemos poncha, quebrámos pão, dançámos o bailinho e comemos espetada com as mãos. Nessa festa, que hoje seria um crime investigado pela Interpol, ocorreu-nos colocar um cartaz do aniversariante num poio sobre um túnel da via rápida. Na altura, por haver tanto, sentimos que seria exagerado. Hoje, por haver tão pouco, sentimos que é apropriado. O melhor de ir fazendo o que se pode é descobrir que, querendo, ainda se pode qualquer coisa.

Parabéns Pai. E parabéns Fran. Bem-vindo ao Diário.

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