Crónicas

Cuidar é muito, é grande

A televisão está no máximo e passa as imagens dos ciclistas no contra-relógio em Lisboa, o meu pai não perde uma etapa da Volta, diz que gosta de ver as terras e aqueles homens de bicicleta a correr por pontes, debaixo de viadutos, em estradas largas ou a subir caminhos serra acima. É capaz de ter razão, mas o som está alto e eu trouxe um livro de casa, é melhor ler no quarto, no meu velho quarto.

Arrumo duas almofadas atrás das costas e, ali estendida, com a janela aberta para os velhos eucaliptos da frente, não duro mais de cinco minutos acordada. Pesa-me o cansaço, a tarde está morna e cinzenta e eu tenho, em semanas, um momento de paz. Não estou em cima de um horário de um medicamento, nem de uma consulta ou exame, nem me preocupa o almoço ou o jantar e é feriado, não tenho trabalho entre mãos.

As letras fogem, a história pesa-me nos olhos, não faz mal se dormir, mesmo que me faça falta os livros e não me queira esquecer de mim, nem das coisas de que gosto. Sei que ando em cima de uma corda onde tento equilibrar a atenção ao meu pai e a minha vida, mais o medo de não estar a fazer tudo o que posso. Cuidar de alguém, saber que depende nós é algo grande, que nos engole e às vezes parece que tira o ar com aquelas dúvidas insistentes do será que falhei o dia da consulta ou, quem sabe, se troquei os medicamentos?

E isso enche-me a cabeça, tornou-se tão importante que, outro dia, depois dos miados suplicantes dos meus gatos, dei conta que a comida estava quase no fim. Antes, tinha cortado em dois o frasco do gel de banho para aproveitar tudo e foi preciso improvisar o jantar por não ter ido às compras. E perdi a conta às vezes que já cancelei a consulta no dentista e também não sei há quanto tempo não vou ao ginásio. São insignificâncias, mas são a minha rotina e a nossa rotina é também a nossa vida.

Mas se me fazem falta essas insignificâncias, se estou cansada e durmo assim que me reclino no sofá ou na cama, também sei que não queria estar noutro lugar a não ser aqui, ao lado do meu pai, a cuidar da casa e do que nela existe, a entreter-me com o que vou descobrindo nos armários e nas prateleiras, dentro de gavetas, como as cartas que recebi quando estava na faculdade e as chamadas telefonónicas eram caras.

Ou a ver a Volta a Portugal e os outros programas da tarde, ou a falar das coisas de antigamente, de coisas nossas, da nossa história, da família que é cada vez mais curta, que existirá enquanto soubermos quem somos e que laços nos unem. Cuidar é muito, é grande, parece que nos engole, mas nada é mais compensador ou mais bonito, nada nos devolve tanto como estar lá no lugar onde achamos que devemos estar.

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