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Crónicas

Voltando (ainda) atrás

Muitas vezes é preciso voltar atrás, para perceber melhor aonde nos leva o caminho. Pelo menos em matéria de compreensão do mundo e de nós próprios.

Voltemos, então (ao assunto de há oito dias): utopia e distopia. Já em 1868, Stuart Mill popularizava a oposição dos conceitos: “O que é demasiadamente bom para ser tentado, é utópico; o demasiado mau, é distópico”. Ou seja, uma é o malogro da outra. E disso tivemos abundantes notícias, historicamente falando.

Na famosa trilogia “1Q84”, título que “pisca o olho” ao famoso “1984” — romance sobre uma sociedade totalitária futurista em que um omnipresente Big Brother a toda hora vigia toda a gente —, Murakami cria uma ficção (muito nipónica, diga-se) sobre mundos alternativos que interagem com a realidade: a pouco e pouco, pequenas idiossincrasias da trama levam Aomame à percepção de certas alterações (que só ela constata) naquilo que sabe sobre o mundo (por exemplo, o aparecimento de duas luas no céu: a habitual, que todos veem, e a outra, que só ela vê, revestida a verde-vegetação, cor que vai aparecer depois na língua de certos personagens). Só a evolução da narrativa vai amarrar os diferentes pontos da realidade ficcionada, mostrando como tempo e espaço se encadeiam para recriar uma nova experiência (de si e do mundo). E, com os personagens, ao seguir a trama romanesca faz o leitor a sua própria viagem...

Na ficção como na realidade, o “nó” que liga as coisas, que ata ou que solta, passa sempre pela subjetividade pessoal: que é o tempo senão um contínuo presente que se deslaça, para a frente ou para trás, pelas vivências diferenciadas, contínuas, sobrepostas, do espaço e dos espaços? De uma forma ou de outra, percepção é sempre auto-compreensão.

Agora que começamos a “desconfinar” ¬— a gramática ajuda-nos a criar “realidades alternativas”, com o risco de se tornarem “mundos paralelos” ¬—, pode ser útil voltar um pouco atrás, talvez passar mesmo pela peregrinação interior e reavaliar o que experimentámos como vivência inaudita do espaço e do tempo: que vazio, que distância, que ausências eram essas, e porque nos doeram tanto? Será possível revisitar o que vivemos como anormalidade sofrida e obsessiva, e perceber finalmente o que aprendemos com os constrangimentos, e até que ponto o estrago e a virulência que atingiram as sociedades humanas podem ser um novo desafio lançado à coragem e à esperança, chamadas agora a (re)construir, como verdadeiramente outro, um mundo melhor — na economia, nas relações, na ética do trabalho e da natureza, na política como realização da justiça?

Nunca mais será como dantes, dizem uns; tudo ficará bem, dizem outros. Mas desconfio que não será nada assim, nem uma coisa nem outra. A realidade não se afasta, e a natureza humana muda pouco. No espaço e no tempo, o sofrimento é coisa que dura e perdura. A luz do sentido e as clareiras de liberdade são, no milenar devir humano, episódios intermitentes, árduas conquistas nunca seguras. Agora, mais uma vez sobre os escombros de um certo mundo velho e iníquo, inteligência moral e vigilância no sacrifício deveriam realinhar todo um “modus vivendi”: essa seria a única aurora para vislumbrar — utopia em construção — um “admirável mundo novo” nos domínios do possível.

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