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Obrigado, Fátima!

Há poucas semanas, junto aos tapetes florais por onde passaria a procissão, vi a Fátima, feliz, acompanhada da família. A poucos metros dali, há mais de 40 anos, junto à câmara municipal, a Fátima, ainda adolescente, estendeu a mão a uma criança de 5 anos, marcando-a para toda a vida. Essa criança era eu, ainda sou, e estava na Biblioteca Calouste Gulbenkian com os meus irmãos mais velhos. A bibliotecária incentivava-os para que fizessem o cartão e as suas primeiras requisições. Eu ficara de lado, esquecido, por ser demasiado pequeno para os livros, por ainda não entender as letras.

A Fátima estava ali, a ver-me por dentro. Aproximou-se, perguntou-me se queria levar um livro. O meu ar cabisbaixo e envergonhado deve ter-lhe respondido. Levou-me pela mão, insistiu com a bibliotecária, preencheu o formulário e ajudou a escolher. Tem de ter muitos desenhos, dizia. Queres este? Nunca ninguém compreendeu tão bem os meus silêncios. Robinson Crusoé, numa versão infanto-juvenil, grande formato, capa dura, ilustrações coloridas em todas as páginas ímpares. O meu primeiro livro, pelas mãos e pela sensibilidade da Fátima. Ainda hoje acredito que aquele momento definiu grande parte da minha vida, o gosto pela leitura, a paixão pela natureza, pela vida selvagem, pela aventura e pela descoberta. Até devolver o livro, mesmo sem o ler, absorvi-o com todos os sentidos, a textura, o cheiro e o som das folhas, o brilho da capa, os pormenores de todas as ilustrações. Lembro-me bem de brincar com o livro. Sim, também podemos brincar com eles. Sentado atrás da casa, abria-o ao acaso (ao calhas), tentando acertar em cada um das ilustrações. Atrás daquele vieram muitos outros livros.

Eu segui a minha vida, a Fátima seguiu a dela. O seu gesto espontâneo, sensível, e até ternurento, foi uma pequena semente, lançada há mais de 4 décadas, que germinou, cresceu e em mim produziu muitas outras sementes, que também elas germinaram, até ser a floresta que hoje sou.

O gesto oferecido pela Fátima, jovem nascida numa família tão numerosa quanto a minha, mas ainda com menos recursos, foi para mim um dos grandes tesouros que recebi, e que guardo. Obrigado, Fátima!