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A Autonomia Regional e o Mar

A autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira é uma das conquistas mais sólidas e transformadoras da democracia portuguesa. Estabelecida em 1976, como resposta às exigências de coesão territorial, justiça social e desenvolvimento equilibrado, essa autonomia tem permitido às Regiões Autónomas (RA) enfrentar com resiliência os desafios da insularidade, da fragilidade económica e da dispersão populacional.

Nas últimas décadas, os resultados dessa autonomia são evidentes nas melhorias significativas introduzidas na governação, no acesso à saúde, na educação, nas infraestruturas e até na projeção internacional das RA. Contudo, a gestão partilhada do mar é um domínio estratégico onde o modelo autonómico ainda não revelou todo o seu potencial transformador.

Esta omissão é tanto mais paradoxal quanto se reconhece que Portugal é, por vocação e geografia, um país marítimo, com uma das maiores ZEE da Europa. Os Açores e a Madeira vivem em íntima relação com o mar, que estrutura a sua identidade, cultura, economia e futuro. O oceano, para além de separar fisicamente as RA do Continente, liga-as ao mundo e posiciona-as no centro das grandes dinâmicas atlânticas do século XXI, num tempo em que os recursos marinhos assumem crescente valor económico, ambiental e geopolítico.

Perante esta realidade, não faz sentido que o mar continue a ser gerido quase exclusivamente a partir de Lisboa, com decisões distantes e muitas vezes desfasadas das realidades regionais. O atual modelo, excessivamente centralizado, limita a capacidade das RA para responderem com agilidade aos desafios e oportunidades do mar. Em setores como o ordenamento do espaço marítimo, a proteção ambiental, a investigação científica, as energias renováveis ou o turismo náutico, o défice de gestão partilhada compromete a eficácia da ação pública.

Encontram-se exemplos concretos em projetos de aquacultura travados por processos administrativos, em candidaturas de investigação retardadas por pareceres técnicos centralizados, em investimentos em energias do mar adiados por ausência de regulamentação apropriada. Isto, apesar de as RA contarem com universidades ativas, centros de excelência científica, empresas inovadoras e comunidades marítimas profundamente conhecedoras do território. Há, pois, uma clara assimetria entre o que as regiões podem fazer e aquilo que, por via legal ou administrativa, estão de facto autorizadas a executar.

Importa, por isso, avançar para um novo modelo de gestão partilhada do mar, baseado na cooperação estratégica entre o Estado e as RA. Um modelo assimétrico, mas solidário, que reconheça a legitimidade e a capacidade dos Açores e da Madeira aprofundarem a intervenção na gestão dos seus espaços marítimos adjacentes, sem pôr em causa a unidade do Estado, antes reforçando-a com inteligência institucional.

Este modelo de governação marítima deve assentar em três princípios fundamentais. Pelo princípio da subsidiariedade, as decisões devem ser tomadas ao nível mais próximo dos cidadãos sempre que este escalão tiver capacidade técnica e política para agir eficazmente, reforçando a democracia de proximidade. Pelo princípio da responsabilidade partilhada, o Estado e as RA devem construir uma visão comum sobre os objetivos a atingir, repartir instrumentos e assumir conjuntamente a avaliação dos resultados. Pelo princípio da solidariedade interterritorial, o mar é um bem comum nacional e uma oportunidade regional, devendo os seus benefícios e encargos ser distribuídos de forma justa, equilibrada e sustentável.

Para concretizar esta visão, afigura-se útil, entre outras medidas, a criação de Conselhos Regionais do Mar, com competências consultivas e operacionais; contratos-programa Estado–Regiões para setores estratégicos; e a delegação de competências em agências marítimas regionais, que divulguem indicadores de desempenho, nomeadamente o crescimento do emprego azul, o número de projetos de investigação desenvolvidos localmente, a eficácia na proteção ambiental marinha e o aumento do investimento produtivo no setor.

Este novo paradigma libertaria o potencial de setores relevantes das RA como: a pesca sustentável, respeitando os ecossistemas e valorizando a produção local; a biotecnologia azul, aproveitando os recursos genéticos marinhos com inovação; as energias oceânicas, como as das ondas, marés e correntes; o turismo científico e náutico, ancorado nas singularidades insulares; e a formação técnico-profissional especializada, com base em parcerias entre universidades, centros de investigação e empresas do setor.

Mais do que isso, afirmaria os Açores e a Madeira como plataformas avançadas de governação, inovação e conhecimento no Atlântico europeu, contribuindo diretamente para a soberania científica e tecnológica de Portugal no mar.

Países com experiências autonómicas semelhantes demonstram que este caminho é possível. A Dinamarca delega amplamente poderes marítimos à Gronelândia e às Ilhas Faroé. A Espanha atribui competências significativas às Canárias no planeamento costeiro e no aproveitamento dos recursos marinhos. Por que razão deve Portugal manter um modelo tão centralizado, quando a realidade insular exige exatamente o contrário?

O modelo autonómico português é reconhecido como uma referência de descentralização democrática. Mas, para estar à altura dos desafios oceânicos contemporâneos, precisa de evoluir, porque valorizar a gestão partilhada do mar não é um capricho dos Açores ou da Madeira, é um desígnio nacional. Num tempo em que os oceanos são palco de disputas geopolíticas, riscos ambientais e transformações tecnológicas sem precedentes, não podemos continuar a operar com os instrumentos institucionais do século XX.

Se Portugal quer completar a sua transição de Estado marítimo para Nação oceânica, deve reconhecer que as RA são protagonistas centrais de uma gestão marítima moderna, sustentável e estrategicamente integrada.

Aprofundar a gestão partilhada do mar é reforçar a coesão da República. É afirmar que os Açores e a Madeira são centros de decisão com capacidade de contribuir decisivamente para o futuro do país. É compreender que o mar, esse extraordinário e inigualável elo físico e simbólico da portugalidade, só será plenamente aproveitado quando for gerido com confiança, inteligência e partilha entre todos os níveis de poder.

A gestão partilhada do mar não divide Portugal. Fortalece o país e é essencial para enfrentar os desafios oceânicos do nosso tempo.