Direito à habitação - direito a casa gratuita: o que realmente diz o artigo 65.º da Constituição
“O Estado é obrigado a dar-me uma casa, está na Constituição!” – a frase ouve-se em discussões acaloradas ou em murmúrios inconformados, como se o direito à habitação implicasse, por si só, a atribuição gratuita de uma casa a quem a requeira. Mas será que é mesmo assim? E se fosse, estaríamos perante uma inconstitucionalidade?
O Estado tem uma obrigação jurídica directa de fornecer uma casa? Talvez devesse ter! O maior problema não é a letra da Constituição, é o abismo entre essa letra e a realidade habitacional de milhares de pessoas em Portugal.
O artigo 65.º da CRP afirma que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto”. Contudo, este direito é um direito social de natureza programática, que impõe determinadas obrigações positivas ao Estado como a adopção de políticas públicas de habitação, mas não confere um direito subjectivo imediato a receber uma casa fornecida pelo Estado. Interpretá-lo como um “cheque em branco” distorce o espírito da norma e do constitucionalismo social.
Importa compreender e distinguir que os direitos fundamentais não são todos iguais. Alguns, como o direito à liberdade (art. 27.º), são directamente exigíveis; outros – os direitos fundamentais prestacionais – como o direito à habitação dependem de medidas legislativas, planeamento urbanístico, recursos orçamentais e acção administrativa progressiva. A omissão absoluta do Estado pode ser inconstitucional (art. 283.º CRP), mas a mera inexistência de oferta habitacional imediata não o é.
Vamos destrinçar os conceitos: o direito à habitação é um direito social com duas partes diferentes, como se fosse uma moeda com duas faces.
A primeira parte: o direito de defesa individual (direito negativo) – ninguém pode tirar a casa a alguém sem uma boa razão e também ninguém pode impedir alguém de tentar conseguir uma casa, ou seja, é um direito que protege contra abusos. Neste sentido, justifica medidas de protecção contra a privação da habitação (ex: limites à penhora da morada de família, limites mais ou menos extensos aos despejos).
A segunda parte: o direito à ajuda do Estado (direito positivo ou social) – o Estado deve criar condições reais para o acesso à habitação: construir habitação social, incentivar o arrendamento acessível, regular o mercado, apoiar cooperativas ou autoconstrução. A Constituição exige também um sistema de rendas compatível com os rendimentos familiares (n.º 3), e regras justas para o uso do solo urbano (n.º 4), garantindo a participação dos cidadãos no planeamento urbanístico (n.º 5).
Assim, o problema não está tanto na letra da Constituição, mas no desfasamento entre a norma e a realidade. Jovens sem acesso ao arrendamento (em Lisboa, no ano de 2024, apenas 2% das candidaturas ao arrendamento acessível obtiveram uma habitação), idosos despejados, famílias a viver em tendas, na rua, em situações deploráveis. O parque habitacional público é reduzido, os apoios são burocráticos e o mercado actua sem controlo.
Coloca-se a questão da promessa não cumprida: se é um direito básico do ser humano, será que temos que pagar por ele? Resultado: o Estado não garante sequer o mínimo essencial, apesar do art. 65.º dizer que essa é a sua função.
Talvez esteja na altura de se pensar num verdadeiro direito subjectivo à habitação:
– Um dever jurídico directo do Estado;
– Um mecanismo de protecção judicial (como existe para salários, pensões, etc.);
– Um sistema de urgência habitacional com execução imediata.
Temos exemplos na Alemanha, Áustria e países nórdicos que têm mecanismos quase automáticos de resposta habitacional.
Porque não em Portugal?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 25.º) reconhece a habitação como parte do “nível de vida suficiente” para assegurar saúde e bem-estar. O Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (art. 11.º) impõe aos Estados medidas concretas para garantir uma moradia digna e a melhoria contínua das condições de vida. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 34.º, n.º 3) também reconhece o direito à ajuda à habitação para assegurar uma existência condigna. Os direitos fundamentais prestacionais não podem depender apenas do mercado.
Não é suficiente ter um direito no papel. A Constituição precisa de parar de ser lida como um limite, mas como uma promessa a cumprir. O direito à habitação só é direito se tiver consequência real.
Não basta, pois, proclamar o direito no papel – é preciso torná-lo efectivo e exequível. Isso exige políticas públicas sérias, investimento público, legislação adequada e compromisso político. Exige também que deixemos de tratar os direitos sociais como promessas vagas ou slogans populistas.
É urgente que Portugal trate o direito à habitação com a seriedade que a Constituição impõe – não como caridade, não como um privilégio, mas como justiça!
Cristiana Valente