O bom, o mau e o chico-esperto
Por magia, opção política ou simples falta de imaginação, André Ventura prepara-se para alcançar a proeza de estar em todos os cartazes do Chega às próximas eleições autárquicas e não ser candidato em nenhum concelho ou freguesia. O milagre da multiplicação gráfica de Ventura é um assombro político saído de um filme de comédia de gosto duvidoso. Basta olhar para o sorriso amarelo dos candidatos – coitados – reduzidos a pequenos figurantes do espetáculo de Ventura e, por isso, a meras notas de rodapé dos seus próprios cartazes. Seja qual for a eleição, no Chega, o programa eleitoral é sempre a cara do chefe.
O bom: Entre as veias da cidade
Que histórias contam as veias de uma cidade? No Funchal, as histórias contam-se do mar à serra e escrevem-se pela pena de quase 1800 trabalhadores municipais, por momentos atores principais do documentário “Entre as veias da cidade”. Do amanhecer no Ginásio da Barreirinha, aos armazéns de Santa Rita, passando pelas estantes da Biblioteca Municipal até às pedras da calçada do Parque de Santa Catarina, há histórias contadas por quem faz do serviço público vida e profissão. Sob a lente meticulosa do André Moniz Vieira, 14 trabalhadores da Câmara Municipal do Funchal partilham no grande ecrã o passado, o presente e o futuro do que significa servir a cidade e quem nela vive. Cada um com a sua arte e ofício, uns com uma vida na Câmara, outros acabados de chegar ao serviço municipal, mas todos eles com um inegável orgulho na oportunidade de servir. Há, em cada um, um brio indisfarçável de quem se emociona com a cidade sempre num brinquinho, de quem se entusiasma com os livros e jornais que guarda ou o cuidado de quem alinha as pedras da calçada como dispusesse peças num tabuleiro de xadrez. Num registo íntimo, mas coletivo, o documentário revela o que tantas vezes nos passa despercebido: são estas pessoas que mantêm o Funchal de pé. Embora uma cidade viva daquilo que se vê, sobrevive graças a quem permanece invisível - essa é a grande homenagem do “Entre as veias da cidade”.
O mau: André Ventura
Quase quinze dias depois de André Ventura ter lido nomes de crianças na Assembleia da República, numa miserável tentativa de lhes atiçar ódios indizíveis, parece que quase tudo já foi dito. Ainda assim, é preciso que se continue a dizer. É preciso que se diga que é falso que as crianças estrangeiras tenham acesso prioritário a creches e escolas em relação às crianças portuguesas. A nacionalidade não é fundamento de prioridade nas matrículas escolares. É preciso que se diga que os nomes de origem estrangeira, como os citados por Ventura, até podem ser de crianças portuguesas. Aliás, o próprio chefe do Chega acabou por reconhecer, com a impunidade do costume, que nem sequer verificou se, entre os nomes lidos, haveriam ou não portugueses. Por último, é preciso que se diga que o degradante número de Ventura não é a favor dos portugueses, nem encontra guarida na liberdade de expressão. É ódio puro, daquele que nos atira uns contra os outros, que nos dilacera no que sempre assumimos como comum. Não é política, é um convite despudorado à escolha do nome que mais queremos odiar. E nesta hora crítica, em que a Assembleia da República se torna auditório da miséria humana de André Ventura, o que se esperava de quem dirige os trabalhos era tudo menos o que aconteceu. Em vez da firmeza moral e clareza política que se exigia, Marcos Perestrelo (PS) e depois Aguiar Branco (PSD) refugiaram-se na liberdade de expressão para justificar o que não tem justificação. Quando a dignidade humana é atropelada na casa da democracia, importa recordar que as ditaduras começam assim – banalizando o inaceitável.
O chico-esperto: Filipe Sousa
Entrou de mansinho na Assembleia da República. Simpático, inofensivo e inexperiente, foi assim que Filipe Sousa se apresentou ao País. Não tivesse faltado à tomada de posse de uma comissão de que faz parte ou cedido o seu tempo de intervenção a Mariana Mortágua, talvez nem déssemos pelo deputado eleito pelo JPP. Não creio, no entanto, que a aparente ausência do deputado seja coincidência, muito menos fruto de inexperiência. Filipe Sousa sentou-se em Lisboa para tentar fazer política na Madeira. É certo que a política de lá para cá não é novidade na atividade parlamentar dos deputados ilhéus, mas Filipe Sousa eleva-a a níveis estratosféricos de chico-espertice. Primeiro, quando Élia Ascensão aterrou em Lisboa para levar as preocupações de Santa Cruz à República. Não se dirigiu ao Primeiro-ministro, ao Presidente da República, nem sequer aos grupos parlamentares. Élia preferiu queixar-se a Filipe Sousa, transformado em alto dignatário da República Portuguesa. O mais caricato é que o deputado, há pouco menos de dois meses, era Presidente da Câmara e, portanto, não se deverá ter esquecido dos problemas de Santa Cruz. Feita a visita a Lisboa, chegava a hora de retribuir a graça. Desta feita, o convite chegou para Filipe Sousa inaugurar as instalações provisórias da PSP de Santa Cruz, no Caniço. Não bastasse a curiosidade de apenas um deputado, dos seis eleitos pela Madeira, ter sido convidado (ou pelo menos marcado presença), Filipe Sousa brindou-nos com um refrescante banho de amor-próprio. Talvez traído pelo entusiasmo do regresso a casa, Sousa não resistiu a um longo e emocionado elogio à Câmara Municipal e a quem decidiu ceder o espaço à PSP. Resta saber se, para além do elogio, também bateu palmas a si próprio.