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Da infâmia

Nunca, dentro ou fora da escola, os nossos nomes serviram para despertar os monstros da infâmia

Fui ensinada a acreditar que todos, mais ou menos de forma clara, seriam em adultos militantes da decência e da tolerância. Alguns, por alguma razão que não sei apontar, não aprenderam estes ensinamentos.

Tratava-se, naquela altura, da idade em que o mundo era pleno e que parecia que ia acabar no dia seguinte. Era a doce infância. Foi aí que aprendi que qualquer revolução seria facilmente derrotada pela hegemonia patriarcal: a compra dos doces estava apenas ao alcance desse poder. Esta lição mantém-se aprendida na política. Foi evidente, naquela época, a força do capitalismo mais simples. É assim a infância: descomplicada. Deveria ser assim com todas as crianças.

Nunca me ocorreu a possibilidade do ultraje político em expor nomes de menores naquilo que é a maior desonra pública que assistimos nas últimas décadas. Quem usa crianças para fazer política não pode servir a causa nenhuma. Nunca, dentro ou fora da escola, os nossos nomes serviram para despertar os monstros da infâmia. Éramos livres. Sem inquietações maiores. Sem listas organizadas para vomitar ódios. Da origem grega do André ou da Rita, ao hebraico João e Maria, compreendíamos bem o que era ser humano.

O mundo, na minha infância, acolhia Portugal em França, na Suíça, no Luxemburgo e outros tantos que retornaram às suas regiões por conta do fim das colónias. Não me lembro de, em nenhum Parlamento, nomes de crianças (portuguesas ou não) terem sido lidos como se fosse uma sentença. Como se fosse um crime viver num país onde não se nasceu. Atente-se aos dados perto de nós. Em 2023, o total de nascimentos foi de 3,67 milhões na União Europeia (UE), dos quais 23 % (aproximadamente 843 000) foram de mães estrangeiras (nascidas fora do país de residência, sejam ou não da UE).

Num país em que se nomeiam crianças do púlpito parlamentar a infâmia é maior, mais grave e mais cruel. Parece que se deu o tiro de partida para que a caçada comece. Insisto: o ponto de partida, com homens e “serviçais caninos”, foi a Assembleia da República. Que comecem os jogos. É esta a sensação.

Não ouvi a indignação da chamada “direita moderada”. Miguel? Marcelo, não dizes nada sobre isto? Luís, não calas o teu parceiro? Quem vos cortou a voz? Valeu-nos a Cecília Meireles que disse o óbvio: parece haver em Portugal quem considere que há crianças que não deviam estar na escola.

Li algures:

- “Tens estrangeiros na tua escola?”

- “Na minha escola só existem alunos.”

É possível perder a voz quando as crianças são o alvo do ódio? Não é compreensível a impunidade perante tudo isto. Aqueles que hoje perfilham este rancor e espalham o veneno sobre as crianças, que cuidem dos filhos que um dia queiram emigrar. Não vá algum deputado do país de destino ler o seu nome em voz alta para que a infâmia se continue a alastrar. A infâmia está à solta. Foi engolida pela mais baixa das políticas: a perseguição aos que contam com o nosso acolhimento.