DNOTICIAS.PT
Crónicas

“Estes são os critérios, mas se Miguel Albuquerque não gosta arranjamos outros”

1. “Estes são os critérios, mas se Miguel Albuquerque não gosta arranjamos outros”, paráfrase a Groucho Marx.

[ou a epopeia da pobreza que afinal era um erro de cálculo]

Era uma quarta-feira como as outras, com sol de mais para o bronzeado do presidente, mosquitos no gabinete da Secretaria da Inclusão e uma leve humidade nas estátuas, quando o senhor doutor Miguel Albuquerque, Presidente do Governo Regional da Madeira, soube da infâmia: a Madeira, esta ilha que segundo ele já devia estar listada na Forbes como paraíso de sucesso social, estava em segundo lugar no risco de pobreza em Portugal. Segundo lugar. Atrás de quem? Dos Açores, claro, que como toda a gente sabe são um arquipélago que não se governa, não se entende, nem se deixa governar, como dizia o velho Salazar com a ternura que tinha pelos degenerados das ilhas.

Segundo lugar. Como se ainda houvesse lugares na pobreza. Como se a pobreza fosse uma corrida com pódio e medalhas, e a Madeira, coitadinha, ali no degrau do meio, com um ramo de flores murchas e a cara de quem se esqueceu das falas.

E o senhor presidente, incomodado (não com os pobres, Deus nos livre, mas com os dados), pôs-se a matutar. Quem são estas pessoas que fazem estatísticas? Quem lhes deu autoridade? Porque é que não consultaram primeiro o Boletim de Execução Orçamental? E sobretudo: quem lhes disse que os números valem mais do que a percepção íntima e infalível que ele tem da realidade, essa coisa flexível, moldável, tratável a martelo e a conferência de imprensa?

Foi então que, com o ar de quem lê uma epifania nas etiquetas do vinho Madeira, Albuquerque descobriu a solução: os critérios estão errados. Claro que estão. Tinham de estar. Não podiam estar certos. Ninguém se lembra de ver pobres nas festas da flor, nos camarotes dos estádios de futebol, nos festivais de verão (apesar de um bêbado ou outro), nos campos de golfe, nas marinas, nas empresas de sucesso visitadas todas as semanas, ou no vlog presidencial que navega entre a cozinha e um cantor de sucesso. Ora se não se veem, é porque não existem. Ou então escondem-se, os malandros. Porque há pobres muito dissimulados. Uns vivem atrás de cortinas, outros têm roupa lavada, alguns até leem jornais, esses são os piores, porque se fazem passar por gente.

E então propôs rever os critérios. Com todo o rigor que os governos regionais põem em rever aquilo que não lhes agrada. Talvez trocar o “rendimento mediano” pelo “rendimento imaginado”. Substituir o índice de Gini por uma sondagem de resposta múltipla feita à porta da Quinta Vigia: “Sente-se rico? Sim ou sim?”. Ou então usar o método mais eficaz de todos: comparar com lugares mais pobres. Porque se houver sempre um sítio pior, então está tudo bem. A Sardenha, por exemplo. Toda a gente sabe que a Sardenha é pobre porque é italiana. E as Canárias, um antro de espanhóis com subsídios. E a Sicília. A Sicília, com a sua máfia e os seus tomates secos. Se eles estão pior, nós estamos óptimos.

Pelo meio, Albuquerque falou em PIB. Claro que falou. O PIB é o seu brinquedo preferido. O PIB é como a caderneta do banco de quem só lê o saldo e ignora os débitos. O PIB, coitado, é uma grandeza macroeconómica que serve para justificar qualquer coisa, incluindo a ideia absolutamente genial de que não pode haver pobres num sítio com PIB elevado. Como se o dinheiro circulasse por osmose. Como se os dividendos dos hotéis de luxo pingassem por milagre nas contas dos empregados de limpeza a recibo verde. Como se um aumento de produção significasse, por decreto, um aumento da dignidade.

E então chegámos ao ponto glorioso da retórica governamental: a pobreza não existe. Existe um erro de interpretação. Uma falha no algoritmo. Um “bug” no sistema. O problema não é o sofrimento, são os critérios. Não é a fome, é o INE. E, portanto, como qualquer bom governante pós-moderno, o senhor presidente não propõe erradicar a pobreza, propõe erradicar a medição da pobreza.

Imagino já os novos indicadores:

– O número de sorrisos por metro quadrado.

– O consumo de poncha por agregado familiar.

– A quantidade de visitas do Presidente do Governo a empresas.

E uma Madeira onde a miséria é somente uma má redacção de relatório. Onde a exclusão social é um termo técnico sem aplicação prática. Onde os bairros sociais são “núcleos residenciais em transição urbanística” e onde o rendimento mínimo garantido é o que sobra depois de pagar os cartazes com a cara do presidente.

E assim, aos poucos, entre comunicados e palmadinhas nas costas, lá se vai resolvendo a pobreza como se resolve uma gafe política: fingindo que não aconteceu. Ou melhor, explicando que é culpa dos critérios. Dos malvados, pérfidos critérios. Esses que não têm coração, nem filiação partidária. Que não vão às inaugurações. Que não votam.

E um dia, quem sabe, Miguel Albuquerque acordará com a notícia de que a Madeira é a região mais rica da Europa, com zero por cento de pobreza, cem por cento de sucesso, e todos os pobres voluntariamente desaparecidos. Talvez para a Sardenha. Talvez para a Sicília. Talvez para o rodapé de um relatório com critérios certos.

2. PIDDAR: Plano Incompleto de Desenvolvimento Disfarçado em Anúncio Repetido

Há nas páginas do PIDDAR 2025 aquela mesma névoa densa que cobria os domingos, quando eu dizia às miúdas que depois do almoço íamos ao campo passear e eu sabia, sem saber porquê, que o almoço se prolongaria para lá da digestão e o campo ficaria para outro dia. Havia essa coisa vaga e gasta dos planos que não querem ser planos, das promessas que nascem mortas, dos números que se exibem como se fossem actos, quando não passam de intenções a disfarçar a inércia. Tudo aquilo tão cheio de listas, de medidas, de programas, de fundos com nomes que já ninguém distingue uns dos outros como se a abundância de siglas pudesse ocultar a escassez do essencial, como se se pudesse construir uma casa com tinta, sem tijolos, com palavras em vez de pedra.

Entrei nele como quem entra em algo que já viu. O mais do mesmo, um atirar de coisas uma em cima das outras. Os mesmos erros, a mesma forma, a mesma incongruência. Claro que isto é a minha maneira de ver as coisas. Embora o PIDDAR seja um documento complexo de análise, o ter tido que me debruçar sobre três deles, faz com que já saiba ao que vou, até porque as diferenças são poucas. A eterna falta de um cronograma, de razões para a execução de projectos, de estudos de custo/benefício, etc.

E falta lá o de sempre, o essencial. E o essencial, aquilo que faltava em cada página, em cada parágrafo, é o tempo. Não aquele tempo cronológico e entediante dos relógios de parede, mas o tempo concreto das obras feitas, das datas de início e de fim, dos cronogramas com setas e barras e colunas, desses gráficos simples que dizem: começamos aqui, avançamos assim, acabamos ali. No PIDDAR, o tempo não existe. Ou melhor: existe como espectro. Sabe-se que hão-de fazer algo em 2025, mas não se sabe quando, nem como, nem em que ordem, nem com que prioridades. Como se 2025 fosse uma ideia, uma metáfora, uma ficção conveniente para empurrar decisões com o pé para debaixo da mesa. E até porque, aprova não aprova, e o ano já vai a meio. É que havia pressa, mas não era assim tanta.

Porque é isso que se faz neste documento: empurra-se com a barriga, salvo seja. Empurra-se o futuro, empurra-se o escrutínio, empurra-se a exigência. Não há prazos porque com prazos há cobranças. Não há fases porque com fases há responsabilidade. Não há cronogramas porque com cronogramas há atrasos e com atrasos há culpa. E a culpa é uma coisa feia, uma coisa que se evita como se evita a verdade. A verdade de que a administração regional, em vez de planear com rigor, prefere encenar com entusiasmo.

E, no entanto, tudo aquilo cheira a mofo. Um mofo respeitável, institucional, com timbres e brasões e assinaturas em fundo branco. Cheira a gabinete. Cheira a Secretário ou Secretária. Cheira àquela esperança cansada de que ninguém vá ler com atenção, de que ninguém repare que por detrás dos milhões está o nada. Um nada organizado, um nada estruturado, um nada com departamentos e percentagens e mapas, mas ainda assim um nada. Porque o tempo está ausente. E onde não há tempo, não há compromisso. E onde não há compromisso, não há política, só representação.

Há hospitais mencionados, há transportes falados, há escolas prometidas, há investimentos em inovação, em clima, em habitação, tudo isso com a pompa habitual de quem escreve para ser citado, não para ser cumprido. Mas onde está o dia em que se lança a primeira pedra? Onde está a semana da entrega da empreitada? Onde está o trimestre da avaliação intermédia? Onde está a margem de segurança, o estudo de custo/benefício, o plano de contingência, o sinal de que alguém pensou nisto como se fosse sério, como se fosse mesmo para fazer, como se estivesse em causa mais do que a impressão de trabalho feito?

E depois, claro, há o silêncio. Aquele silêncio confortável da administração que sabe os deputados estão demasiado ocupados a discutir o acessório (aqueles que o fazem), que os cidadãos desistiram de entender. E por isso o PIDDAR é o que é: um tapete onde se varre a ausência. Um documento tão bem paginado, a cheirar a novo, tão meticulosamente inútil.

Porque, no fundo, a Região, esta Região que somos, esta Região que esperamos que seja, não precisa de mais papel. Precisa de tempo. Precisa que lhe devolvam o tempo. Que o tempo das obras seja contado, não anunciado. Que o tempo das pessoas seja respeitado, não adiado. Que o tempo do futuro não seja eternamente a seguir às eleições. E esse tempo começa onde o PIDDAR termina: na coragem de dizer quando, como, com quê, e com quem.