O Governo do Saque
1. Madeira, a economia de manutenção.
A dívida da Região Autónoma da Madeira, segundo o Boletim n.º 02/2025, não é bem uma dívida, é antes um modo de estar, uma espécie de respiração política assistida, uma forma de silêncio que se arrasta pelas páginas como as cadeiras vazias de um parlamento abandonado. 5.424 milhões de euros, disseram eles, como quem diz que chove lá fora e não há mais leite no frigorífico. O número, enorme, grosso, pesado, atravessa o texto sem vergonha, como um touro velho e coxo no meio de uma tourada que já acabou, mas em que ninguém teve coragem de apagar as luzes. Escrevem-no sem raiva, sem angústia, como se fosse natural, como se a dívida fosse o destino, como se a Madeira nascesse já com ela no colo, como uma criança a quem cortam o cordão umbilical e imediatamente lhe amarram ao tornozelo uma algema com juros.
A tentativa, claro, é disfarçar. Falam de refinanciamento, operações técnicas, exclusões temporárias, comparações habilidosas, como se a dívida, depois de bem lavada, perfumada e maquilhada, se tornasse quase uma vantagem competitiva. Apontam para 2012 como quem aponta para o fundo de um poço e diz: vejam como já não estamos lá. Mas esquecem-se de dizer que continuam pendurados na parede, com os pés a escorregar, as unhas a sangrar, e os olhos postos num céu que não vem. A comparação com 2012 é uma fraude emocional, como lembrar a um alcoólico que hoje só bebeu meia garrafa, ao contrário da caixa inteira que despejou ontem.
Insistem no PIB como desculpa, uma espécie de retrato de família pendurado na parede para esconder a infiltração. O rácio da dívida em percentagem do PIB, dizem eles com ar de funcionário sensato, é inferior ao do país e da Europa. E esquecem-se, ou fingem esquecer-se, que o PIB da Madeira é um animal doente, alimentado por seringas de dinheiro vindo de fora, que passa o tempo no hospital, que vive de esmolas técnicas e transfusões orçamentais. O PIB não é o que a Madeira produz: é o que a Madeira recebe. O PIB, aqui, é uma almofada debaixo de um morto, e não há almofada que transforme um cadáver num hóspede.
O boletim avança, de número em número, como um comboio velho a caminho do nada. Há qualquer coisa de mecânico, de automatizado, de maquinal naquela enumeração de percentagens, como se estivessem a falar de chuvas, de temperatura média, de comprimento de túneis. Mas por detrás de cada linha há um desastre que se adia, uma verdade que se oculta, uma palavra que se não diz. Quando falam do SERAM (Sector Empresarial do Estado), por exemplo, não é o SERAM que falam: é o que o SERAM esconde. Uma rede de empresas, sombras de empresas, ossos de empresas, cadáveres com CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) que servem para tudo o que não devia servir: favores, tachos, adjudicações, silêncio. Empresas com gabinetes fechados, com gerentes que não gerem, com orçamentos que se esvaem como água por entre os dedos de um homem velho a lavar o rosto.
Não há aqui estratégia. Não há transformação. Não há um plano. A dívida, diz o boletim, é usada para refinanciar a dívida. A Madeira deve para poder continuar a dever. A dívida não é o meio: é o fim. E no meio disto tudo não há uma palavra sobre o que devia haver: como sair disto, como se cortar o cordão, como se atirar com tudo ao chão e começar de novo. Porque ninguém quer começar de novo. Começar de novo dá trabalho. Começar de novo é perder os lugares, os carros com motorista, os contratos, os gabinetes com vista para o mar.
O boletim fecha com uma frase que é um epitáfio: “os valores reflectem a sustentabilidade das finanças públicas da Região”. É uma frase escrita com a segurança de quem não acredita no que escreve. Como quem diz a uma mãe, com voz de padre, que o filho morreu em combate. Como quem tenta vender a ideia de que o hospital está em ordem porque os lençóis estão limpos. Mas os lençóis não estão limpos. Os lençóis estão manchados com as mãos de todos os que assinaram orçamentos, de todos os que garantiram que era só mais um empréstimo, de todos os que disseram que agora é que era.
Este boletim não é um relatório. É um romance sobre a desistência. Sobre a ideia de que é melhor manter tudo como está, mesmo que seja mau, mesmo que doa, mesmo que não funcione. A dívida é o oxigénio deste regime. Um oxigénio comprado a crédito. A Madeira vive num tempo suspenso, num tempo adiado, num tempo em que tudo se sustenta porque ninguém teve ainda coragem de mandar tudo abaixo. E o boletim, mais do que tudo, é isso: o diário clínico de um doente terminal em coma induzido, com os tubos ligados, com os médicos a sorrirem para a família, com a televisão num programa qualquer, só para não se ouvir o barulho do monitor.
2. O Governo do Saque
[ou como esfolar um povo e chamar-lhe autonomia]
A Madeira, qual ferida cercada de mar, qual bisturi embotado a cortar na carne viva de quem ali insiste em nascer, em ficar, em morrer, bateu mais um recorde, dizem, um recorde de impostos, como se o sucesso se medisse em sofrimento e a virtude em quanto se arranca de cada bolso roto. 1.300 e tal milhões de euros. Repetem o número como se fosse um salmo. Como se cada cêntimo não viesse de um gesto doente, de um restaurante a fechar, de um carro que não se arranja, de um velho que deixa de comprar os comprimidos porque tem de pagar o gás. Em 2025 será mais. É sempre mais. O Governo esfrega as mãos, os jornais abanam a cabeça com aprovação, os tolos sorriem. E os outros, os que sobram, pagam.
Dizem com o ar sério dos que nunca passaram fome que o IVA e o IRC representam 41% do orçamento. Não dizem, talvez porque também não saibam, que essa percentagem se traduz em mais de 1.000 milhões tirados à força do que as pessoas compram e do que as empresas ainda tentam ganhar. Como se fosse possível viver só de cobrar. Como se a Madeira fosse uma vaca sem fim, a dar leite para alimentar o aparelho partidário, os gabinetes, os tachos, as comissões de estudo que estudam o nada, os projectos com nomes em inglês que ninguém entende, os Observatórios que não observam coisa nenhuma. A Região não governa: sangra. E com classe.
E as pessoas? Essas pessoas sem nome que vejo a descer a rua com sacos de plástico nas mãos, olhos baixos, cansaço nos ombros, essas pessoas pagam. Pagam tudo. Pagam até a vergonha dos outros. Pagam os almoços dos deputados, os jantares dos presidentes, os contratos dos primos, a luz do edifício onde se decide que vão pagar ainda mais.
Façamos as contas. Porque os números, quando não são torturados, dizem a verdade. Um bilhete de identidade para a mentira oficial. 1.318 milhões em impostos, divididos por 365 dias: três milhões e seiscentos mil por dia. Por cada uma das 250 mil almas que respiram nesta rocha dá catorze euros e cinquenta cêntimos por dia. 440 euros por mês, por cabeça. Até os mortos pagam, creio. Até os emigrados. Até os que vivem de pensões que não chegam para os medicamentos. E os outros, os que ainda trabalham, esses são esfolados sem piedade, como cabras no matadouro.
No fim do informativo, a DREM declara, com a candura dos cobardes, que “os dados não permitem calcular a carga fiscal”. Como se fosse impossível somar. Como se calcular um rácio fosse mais difícil do que salvar uma alma. Como se os dados não estivessem todos, ali, à frente do nariz deles. O PIB regional, dizem, andará pelos seis mil milhões. As receitas fiscais, mil trezentos e tal. Dividamos. Façamos o que os senhores não querem fazer. Vinte e dois por cento. Talvez vinte e quatro se contarmos a Segurança Social. Uma fatura pesada, de chumbo. E tudo pago em silêncio. Mais baixo que a nacional. É verdade, mas muito alta para uma terra de salários mínimos.
E agora, a parte que falta. A parte que escondem como se fosse um cadáver no sótão. A derrama regional. Esse imposto de que ninguém fala, mas que todos pagam. Um suplemento do IRC, uma taxa sobre os lucros, em cima do que já se paga, em cima do que já se sangra. Um imposto com nome de ruína, que desaparece dos relatórios, que não aparece nas tabelas, que se esconde nos rodapés como uma doença venérea em certidões de baptismo. Está lá, claro que está. Mas não convém mostrar. Porque mostrar seria admitir que a Madeira vive de castigar quem produz. Que aqui, como dizia o meu pai, quem trabalha é burro. E quem manda rouba-lhe a palha.
Quantos milhões a mais? Dez? Vinte? Ninguém diz. Ninguém pergunta. Ninguém quer saber. Os jornalistas não perguntam, os deputados não perguntam, os empresários não se atrevem. Porque todos têm medo de perder qualquer coisa, um contrato, uma subvenção, uma fotografia com o Secretário em pose de estadista. Vivemos nisto: uma economia de obediência e um Estado de papel, onde tudo existe para parecer, não para ser.
A derrama não aparece porque estraga o retrato. Porque transforma a fotografia em radiografia. E mostra a doença. A doença de um sistema que se alimenta do que os outros criam, e que só sabe crescer roubando.
Esta não é uma Região Autónoma. É uma empresa de cobrança com brasão. Uma repartição de finanças com hino e palmeiras. Uma estrutura construída para manter gordos os incompetentes, os oportunistas, os que vivem do dinheiro dos outros com a tranquilidade dos que nunca suaram. Aqui não se governa. Aqui conta-se. E nem isso fazem bem.
A Madeira não precisa de mais receita. Precisa de vergonha. Precisa de silêncio. Precisa que se olhe para quem varre as ruas às seis da manhã e se diga: chega. Basta. A Madeira precisa de respeito. E isso não se cobra. Conquista-se. Mas aqui, já nem isso sabemos fazer.