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Caminhar para lugar algum?

É preciso tomar decisões ouvindo quem de fato conhece os percursos turísticos pedestres

A Madeira possui um trio que a torna única, procurada e elogiada: a conjunção sublime do acentuado declive, da paisagem verde e a integração, geralmente harmoniosa, com as suas vilas e lugares. Estes três componentes vão alternando em diferentes nuances ao longo da ilha, mas, na essência, são a génese da nossa atração turística, e imagem de marca.

O declive, em si, foi sempre indesejado, tido historicamente como agreste, condicionando o distanciamento e isolamento das populações, originou condicionamentos à agricultura, moldando o desenho económico e social da Madeira.

A paisagem verde, neste contexto de ravinas acidentadas, ausência de pradarias, em que as encostas madeirenses espelham com vales, numa alternância contínua, é (quase) única na Macaronésia. O engenho humano dos colonizadores soube aproveitar cada canto para o cultivo, trazendo a engenhosa ideia das levadas de outras paragens, adicionando a cada lugar os respectivos povoados.

É isto que vêem e gostam os turistas que nos visitam. Seja de carro, ou, cada vez mais, a pé. Mas se há 50 anos só alguns se atreviam a calcorrear uma levada, num passeio nivelado, tranquilo e simples, hoje em dia, poucos se contentam com o mesmo. Os turistas agora são mais jovens, mais ativos, mais intrépidos, mais informados. Em vez de comprarem uma excursão de volta à ilha, alugam um carro, com a navegação e algumas aplicações digitais, constroem a sua própria aventura pessoal. Da levada passaram não só para a vereda, mas também para o trail, BTT, o canyoning, a escalada, o coasteering, entre outros. A face do turismo da Madeira mudou muito. A sua natureza ativa está bem vincada, os turistas desfrutam do mais único e precioso que a nossa natureza tem. No entanto, a rapidez e a popularidade com que isto aconteceu é hoje fonte de sucesso turístico, quase tanto como fonte de problemas, que desafiam a logística turística e a segurança.

Na verdade, não nos preparámos devidamente para essa mudança, por muito que tal custe admitir. Note-se a sobrelotação de pontos turísticos, geralmente pontos de início de caminhadas, com estacionamento descontrolado, sem alternativas eficazes e bem sinalizadas. Quantos trilhos estão mal conservados, sem guardas nas arribas perigosas, sem a devida drenagem, escorregadios, sem limpeza de vegetação rasteira, sem remoção de árvores caídas? Falta criatividade para abrir novos percursos, mais seguros e fluidos, vencendo a laxidão de só gerir aqueles já existentes. Os trilhos não estão devidamente classificados pelo nível de dificuldade e perigo, como antigamente se fazia com o número de “botas”, 1 a 5, com o 5 tido como extenuante, perigoso e difícil. A sinalização mais parece dirigir-se a quem já conhece os trilhos, está ausente em muitas bifurcações, e carece rapidamente de uma injeção de criatividade de uma equipa de designers. Falta um regulamento de conduta nos trilhos, curto e simples, a ser cumprido por todos. A insuficiente vigilância por equipes exíguas de fiscais e os inúmeros acidentes que não chegam aos jornais, mas que diariamente estragam férias e vidas. Os últimos incêndios destruíram muitos percursos, inclusive três dos mais icónicos da Madeira, que aguardam vagarosamente a sua requalificação. São estes alguns exemplos da necessidade de uma mudança estratégica na forma como lidamos com o acesso à nossa natureza.

Reconheço que não é uma tarefa fácil, que custa dinheiro, que é preciso coragem em mudar estratégias com décadas de inação, que é preciso apresentar resultados palpáveis em pouco tempo. É preciso tomar decisões ouvindo quem de fato conhece os percursos turísticos pedestres, quem gasta solas nas serras da Madeira, conhecendo a orografia, a geologia, fauna e flora da Madeira. Quem tem a experiência no socorro às vítimas, na prevenção de fogos e aluviões, e também, acautelando o fato de se tratar de zonas que são públicas, de acesso livre aos residentes, não atreitas à comercialização fortuita, numa região que se quer saudável, ativa e ambientalmente sustentável.

Termino deixando aqui um desafio ao Dr. Eduardo Jesus, o responsável com esta tutela, agora que chega o verão e a habitual calmaria política. Calce umas botas confortáveis, ponha água na mochila, acompanhe-se de quem conhece bem as serras, e também de quem não tem medo de sugerir mudanças, certamente a nossa natureza o irá inspirar no caminho, não a lugar algum, mas sim a uma mudança deste paradigma. Aceitará?