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Da decência ao “bardamerdas”: regresso ao australopithecus

A linguagem do poder tem um efeito pedagógico — para o bem e para o mal

Quando um governante — não um cidadão qualquer, mas aquele que deveria ser guardião do bem público e da decência — se vira para uma deputada e a trata por “gaja”, e para outros parlamentares com rótulos como “bardamerdas” ou “palhaço-mor”, não está apenas a cometer uma grosseria. Está a escancarar, sem pudor, a erosão do sentido de Estado, a falência moral de quem ocupa o cargo, e a lenta e corrosiva decadência da cultura democrática.

Um governante que insulta em público, compromete a imagem externa da Região, como se tem observado abundantemente, e alimenta o populismo que se alimenta do desprezo pela política.

Há momentos em que o que se diz pesa mais do que o que se faz. Porque há palavras que não são apenas sons: são diagnósticos. Há insultos que não se perdem no ar — cravam-se na espinha da democracia como punhais. A vida política sã e em democracia robusta, impõe uma espécie de ordem moral, capaz de sustentar, como humanos evoluídos, daqueles que aceitaram a evolução da espécie desde o australopiteco, a discussão dos argumentos de qualquer dureza sem penetrar na dignidade dos intervenientes, protegendo a crítica como base para a democracia, nas palavras de Octavio Paz.

É nesses instantes — aparentemente episódicos— que se mede a temperatura moral de uma governação. A linguagem desabrida não nasce do acaso e não é um produto da reacção calorosa do momento: brota de uma visão distorcida do poder, onde o debate é reduzido a confronto de testosterona e a diferença política é tratada como ameaça pessoal. Quando a linguagem do poder resvala para a sarjeta, é porque já lá está o pensamento que a sustenta.

As consequências, ainda que silenciosas, são devastadoras e não devem ser ignoradas em nenhum momento pelos democratas.

Primeiro, morre o respeito mútuo, esse cimento invisível que sustenta o edifício democrático. Depois, instala-se o cinismo e o distanciamento do povo: o cidadão comum começa a olhar o Parlamento como um teatro menor, onde os actores se insultam sem enredo nem pudor. A seguir, vem a normalização do abuso: se um governante pode chamar “gaja” a uma deputada sem consequências, o que impede qualquer outro de tratar uma mulher da mesma forma na rua, na escola, no local de trabalho? Se para um governante, um deputado pode ser um bardamerdas ou um palhaço quando, sobretudo, não alinha no seu supremo pensamento técnico/político, o que esperar do fervor da discussão doméstica ou da troca de “ideias” entre outros cidadãos que discordam diariamente, com mais ou menos intensidade, e que dominam vários léxicos que, até ver, até podem estar ausentes do dicionário?

A linguagem do poder tem um efeito pedagógico — para o bem e para o mal. E neste caso, a indiferença ou a inconsequência de condutas eventualmente mais imunes à evolução que os humanos foram construindo para refinar a alma, o coração e os modos , conduz a uma impunidade doentia e insultuosa.

Mais ainda: o insulto vindo do topo degrada não apenas quem o profere, mas toda a arquitetura institucional. Fragiliza as instituições e corrompe o edifício de moral que uma sociedade de bem orgulha-se de edificar. Um governante que insulta é um governante que já não governa — apenas estrebucha insolentemente. Já não argumenta — apenas agride. E se o poder só consegue afirmar-se por via da ofensa, é porque perdeu o controlo da narrativa, o domínio dos factos, a autoridade do exemplo.

Este tipo de comportamento não pode ser lido como excentricidade ou traço de personalidade forte, nem mesmo como uma irritação compreensível. Deve ser denunciado como o que é: uma renúncia ao estatuto de servidor público, uma traição ao contrato democrático, uma provocação directa à inteligência e à dignidade de todos os representados.

É tempo de dizê-lo sem rodeios e com clareza: quem insulta assim não está em condições de governar. Quem confunde a liderança e discussão com virulência e insulto rasteiro não merece o poder. E quem transforma a palavra em arma de confronto pessoal, abandonando o debate dos argumentos, prepara o terreno para que o silêncio dos outros se torne cumplicidade.

A democracia não morre apenas quando se fecham os parlamentos. Morre, aos poucos, quando dentro deles se deixam abertas as portas à vulgaridade, ao desrespeito e à grosseria primária. Morre quando se tolera a falta de compostura como estilo, a ofensa como retórica, e a arrogância como forma de autoridade.

Por isso, não é apenas uma questão de civilidade — é uma questão de sobrevivência democrática. Porque a força de um regime democrático não se mede na fúria ou insolência dos seus protagonistas, mas na dignidade com que exercem o poder.