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Fact Check Madeira

Estão a morrer “com muita frequência” recém-nascidos no Serviço Regional de Saúde?

Este ano, dois bebés com menos de um ano de idade faleceram na Madeira.
Este ano, dois bebés com menos de um ano de idade faleceram na Madeira., Foto Shutterstock

Foi recorrendo a uma publicação na sua página de Facebook, no dia de ontem, que o padre José Luís Rodrigues mostrou indignação com o facto de, no seu entender, a Madeira não estar “devidamente preparada para receber aqueles que nascem”.

“Não é tolerável sabermos que está a morrer com muita frequência no nosso serviço regional de saúde bebés recém-nascidos”, refere o sacerdote, assumindo o número de óbitos de crianças recém-nascidas tem aumentado, nos últimos tempos.

À parte todo o contexto que possa ter originado esta afirmação por parte de José Luís Rodrigues, o DIÁRIO procura, nesta rúbrica, verificar se, com base nos números, esse aumento se tem verificado.

A morte de crianças, ainda mais recém-nascidas, é sempre um tema que toca qualquer cidadão e que nos leva a questionar em que aspectos terá a sociedade falhado para que um desfecho desses acontecesse.

Ainda ontem, nas redes sociais, o padre José Luís Rodrigues, pároco de São José, no Funchal, abordou o tema numa publicação que não passou despercebida a dezenas de seguidores. O antigo sacerdote de São Roque dizia não ser tolerável “sabermos que está a morrer com muita frequência no nosso serviço regional de saúde bebés recém-nascidos”.

Deixando a ideia de que “parece ser agora também um drama nascer na nossa terra”, José Luís Rodrigues diz mesmo que não é tolerável “que se cante tão alto que a Madeira é uma terra de sucessos vários, tais como a região melhor destino turístico do Mundo, com uma economia pujante, mas na hora de nascer os nossos descendentes, morrem por falta de alguma coisa que não devia faltar”.

Dirigindo-se a Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional, e a Micaela Freitas, a recém-empossada secretária regional de Saúde e Protecção Civil, pede “que se calem sobre os sucessos da Região e sobre os sucessos do nosso Sistema Regional de Saúde [onde se inclui o Serviço Regional de Saúde – SESARAM], porque não é verdade haver sucessos quando com mais frequência do que se deseja estejam a morrer nascituros [fetos, um ser  humano concebido, mas ainda não nascido] deste feitio”.

À parte o contexto que terá motivado esta publicação, não deixa de ser pertinente o facto de o sacerdote aventar a possibilidade da mortalidade infantil, sobretudo entre os recém-nascidos, mas também de nascituros, estar a aumentar na Região. O DIÁRIO procurou verificar essa ideia, focando-se nos recém-nascidos.

Antes de mais, convém ter presente a diferença entre nascituro e recém-nascido. O primeiro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido, ou seja, trata-se de um feto que se encontra no ventre materno durante a gestação. Já o recém-nascido é o bebé que já nasceu, geralmente considerado assim até os primeiros 28 dias de vida fora do útero, aqui considerado no conjunto de bebés até um ano de idade.

Para concretizar a verificação a que se propõe, o DIÁRIO socorreu-se dos dados estatísticos disponibilizados pela Direcção Regional de Estatística (DREM), que repercutem a informação veiculada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) relativa aos óbitos até um ano de vida. Focamos a nossa atenção nas duas últimas décadas, embora os números disponibilizados retratem todo o histórico desde a década de 70 do século passado até à actualidade.

Entre 2005 e 2024, a média de óbitos de crianças com medos de um ano registados na Região situou-se nos 6,3, registando-se, contudo, nos primeiros três anos desse período, um maior número de casos destes, acima de uma dezena por ano, conforme espelhado pelo gráfico que se junta. Não podemos ignorar a influência nestes números do acesso aos cuidados de saúde existentes na altura, bem como dos avanços registados, desde então, na prestação de cuidados de saúde, no diagnóstico pré e pós-natal, bem como na evolução da medicina no geral.  

Por exemplo, em 1970 a Madeira registava um indicador de mortalidade nas crianças até um ano de 478 óbitos. Quer isto dizer que, cerca de 7% dos nados-vivos (6.737) morriam antes de completar um ano de idade. No início da década seguinte, em 1980, essa incidência descia para 2,5%, com 115 óbitos em 4.569 nascimentos; em 1990 passou para 1,2% (43 óbitos em 3.547 nascimentos); continuando a descer na década seguinte para 0,8% (26 óbitos em 3.217 nascimentos) e para 0,3% em 2005, com 10 óbitos em 2.957 nascimentos.

Mas foquemos a nossa atenção, nos últimos 10 anos, por ser uma realidade mais próxima daquela que temos hoje. Neste período, a incidência da mortalidade com menos de um ano de idade tem rondado os 0,3%, com alguns anos a registarem um ligeiro crescimento, nunca indo além dos 0,4%, como verificado nos anos de 2015 (sete óbitos em 1.947 nascimentos) ou de 2017 (sete óbitos em 1.960 nascimentos).

No ano passado, registaram-se, na Madeira, seis óbitos de crianças com menos de um ano de idade, o correspondente a 0,3%, já que se registaram 1.793 nascimentos. No ano anterior, em 2023, tivemos uma morte de um recém-nascido em 1.747 nascimentos (0,05%) e, em 2022, três óbitos em 1.758 nascimentos (0,2%).  

Em relação a este ano, de acordo com a informação já divulgada pela DREM e com os dados obtidos junto do SESARAM, até ao momento ocorreram dois óbitos de bebés com menos de um ano, um no mês de Fevereiro, outro já no mês corrente. Se compararmos os números do primeiro semestre deste ano, embora o mesmo ainda não tenha terminado, com os primeiros seis meses de cada um dos últimos 10 anos, constatamos que não sobressai qualquer aumento evidente. Prevalecem, nesse hiato temporal, os dois óbitos em cada uma desses semestres. Só em 2016 e 2023 houve apenas um; em 2020 foram quatro; e em 2024 foram três.

Quando confrontado com esta posição e com a possibilidade de estarmos perante um aumento destas mortes, o SESARAM adiantou que “os óbitos ocorridos em bebés com menos de um ano de idade não são, por definição, atribuíveis ao funcionamento ou à responsabilidade directa dos serviços de saúde regionais, nomeadamente porque resultam de situações clínicas graves, pré-existentes e incompatíveis com a vida”.

No que respeita aos dois casos registados este ano, refere aquele serviço público de saúde que “ambos foram devidamente analisados e acompanhados pelas equipas clínicas especializadas, tendo sido concluído que se tratou de situações de natureza congénita e de gravidade extrema, clinicamente incompatíveis com a sobrevivência, mesmo perante intervenção médica célere e adequada”.

Neste contexto, o SESARAM “lamenta profundamente estas perdas e expressa a sua solidariedade às famílias enlutadas”, reiterando que “todos os procedimentos clínicos e assistenciais foram realizados com todo o rigor e responsabilidade”.

Perante o exposto, e tendo em conta que José Luís Rodrigues ora se refere a recém-nascidos, ora a nascituros, sem apontar um período temporal de comparação em cada um dos casos, o DIÁRIO avalia a afirmação do sacerdote como imprecisa, no que respeita à frequência com que estas situações acontecem.

“Não é tolerável sabermos que está a morrer com muita frequência no nosso serviço regional de saúde bebés recém-nascidos”, refere o padre José Luís Rodrigues numa publicação no Facebook.