A Polícia Florestal pode investigar a morte de um cidadão em espaço florestal?
O Corpo de Polícia Florestal tem, por lei, competências de investigação criminal em áreas sob tutela do Instituto de Florestas e Conservação da Natureza.
Uma notícia ontem publicada pelo DIÁRIO afirmava que a Polícia Florestal estava a investigar a morte de um turista checo no Pico do Areeiro, com base em declarações do presidente do Serviço Regional de Protecção Civil. A informação gerou de imediato dúvidas quanto à legalidade e ao enquadramento institucional dessa competência. Fomos averiguar: poderá a Polícia Florestal, de facto, conduzir investigações criminais em casos desta natureza?
A declaração partiu de Richard Marques, presidente do Serviço Regional de Protecção Civil, que, em reacção à queda fatal de um cidadão checo ocorrida no miradouro do Juncal, no Pico do Areeiro, afirmou ao DIÁRIO que “a investigação das causas será com a Polícia Florestal”. A notícia foi publicada ao início da tarde no portal dnoticias.pt, com o título: ‘Polícia Florestal investiga contornos da morte do turista checo’.
A formulação do título e o teor da declaração suscitaram perplexidade entre alguns leitores, que questionaram se tal competência caberia, de facto, à Polícia Florestal. Um dos comentários publicados na página do DIÁRIO no Facebook perguntava directamente: “A Polícia Florestal tem competência para isso?”, levantando a dúvida sobre a legitimidade do envolvimento desse corpo em investigações criminais com vítimas mortais, em particular quando não se trata, aparentemente, de um crime florestal ou ambiental.
Para clarificar a questão, foi consultada a página oficial do Instituto de Florestas e Conservação da Natureza da Madeira (IFCN – IP RAM), entidade responsável pela tutela do Corpo de Polícia Florestal (CPF). Segundo a informação ali constante, o CPF possui um conjunto abrangente de competências, distribuídas por três grandes áreas de intervenção: polícia criminal, protecção civil e acompanhamento técnico-científico de actividades no território sob gestão do Instituto. No âmbito da sua acção como órgão de polícia criminal, a Polícia Florestal exerce funções de policiamento, fiscalização, vigilância e investigação, nos termos da legislação florestal e penal aplicável.
Esta qualificação confere-lhe, em teoria, poderes legais para proceder à recolha de provas, elaborar autos de notícia e adoptar medidas cautelares, sempre que os factos ocorram em território sob jurisdição do IFCN – o que, neste caso, se verifica, dado que o Pico do Areeiro faz parte da Rede de Áreas Protegidas da Madeira, sob tutela directa do Instituto.
O conteúdo funcional da carreira de Guarda Florestal, conforme descrito oficialmente, inclui a capacidade para “investigar os ilícitos” relacionados com a protecção dos recursos naturais e florestais, bem como para “levantar autos de notícia pelas infracções de que tiver conhecimento”. Adicionalmente, os mestres florestais podem orientar equipas do CPF em operações de busca e resgate em áreas florestais e representar o Corpo nas respectivas zonas de actuação.
Contudo, há nuances que importa sublinhar. A maior parte das competências descritas refere-se a infracções directamente ligadas ao património natural e florestal – como incêndios, cortes ilegais, deposição de resíduos ou perturbações ambientais. A investigação de mortes humanas, ainda que ocorridas em áreas protegidas, poderá extravasar o âmbito habitual das atribuições do CPF, especialmente se estiverem em causa indícios de crime, negligência ou omissão de socorro.
De facto, em Portugal, a investigação de mortes suspeitas ou acidentais é, por norma, da competência da Polícia Judiciária, enquanto órgão superior de polícia criminal. A Polícia Florestal pode colaborar com estas entidades, nomeadamente na preservação do local, no apoio a operações de busca ou no levantamento preliminar de informação, mas não é claro que detenha a competência exclusiva para conduzir uma investigação desta natureza até às últimas consequências legais.
Por outro lado, o facto de a Polícia Florestal actuar como órgão de polícia criminal apenas “em matérias do seu domínio de actuação” — conforme interpretação legal comum — levanta a questão de saber se uma queda acidental de um turista se enquadra, de forma directa, nesse domínio, ou se apenas justifica a sua intervenção inicial, enquanto não forem mobilizadas outras autoridades competentes.
Há ainda a considerar que, apesar de o território do Pico do Areeiro estar sob jurisdição do IFCN, a eventual responsabilização penal por negligência, falha de sinalização ou condições de segurança nas infra-estruturas turísticas pode envolver outras entidades públicas, como o Governo Regional, as câmaras municipais ou empresas concessionárias, o que, mais uma vez, pode exigir a intervenção de entidades com competências mais amplas e especializadas.
Conclusão: embora existam fundamentos legais que sustentam a presença e intervenção da Polícia Florestal em espaços sob gestão do Instituto de Florestas e Conservação da Natureza da Madeira — nomeadamente na qualidade de órgão de polícia criminal em matérias ambientais —, subsiste uma margem considerável de incerteza quanto ao alcance dessa competência em situações que envolvam mortes humanas de origem não claramente florestal ou ambiental. A sua actuação no caso do turista checo poderá ser legalmente admissível numa fase preliminar da investigação, sobretudo no que diz respeito à preservação do local e ao apoio nas diligências iniciais. No entanto, não é completamente claro se a Polícia Florestal tem, por si só, competência plena para conduzir a totalidade de uma investigação criminal em casos com implicações penais mais complexas. Em suma, o enquadramento legal permite alguma margem de interpretação, pelo que a clareza sobre os limites concretos da sua acção continua a depender do contexto específico de cada ocorrência — e, eventualmente, de orientações superiores emitidas pelas autoridades judiciárias competentes.