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Análise

“Cuidar melhor da nossa gente”

Portugal uno e diverso é, para muitos daqueles que nos visitam ou sonham experimentar a grandiosidade das descobertas contemporâneas, um exemplo de equilíbrio entre tradição e modernidade, natureza e cultura, mar e serra. É fácil apaixonar-se por uma terra de luz temperada e solo que já foi império. Temos sol em abundância, paisagens que encantam, cidades com alma, um património único e um povo acolhedor. Somos respeitados pela essência, música, fé, história, vinho e futebol. Em muitas destas frentes estamos entre os melhores ou somos promissores em múltiplas e inovadoras vertentes, conjugando saber com criatividade, ambição com talento e autenticidade com universalismo.

Contudo, apesar de tão bons aos olhos do mundo, ainda falhamos com os nossos. Não admira que o próprio Presidente da República entenda que temos de “cuidar melhor da nossa gente”, sobretudo dos mais pobres. Paradoxalmente, Portugal que tanto encanta os outros, muitas vezes desilude os seus.

Não nos basta ser um País bonito e pacífico, onde se come bem e fala línguas, exporta classe e acolhe como ninguém. Urge que tamanha atractividade se traduza em vidas dignas, oportunidades reais e futuro com esperança. Só que chegados ao patamar da exigência, a narrativa colectiva de sucesso esbarra na realidade cruel, assente em salários baixos, acesso impossível à habitação e serviços públicos morosos, a que se junta um interior ignorado, uma regionalização adiada por medos inexplicáveis e uma inusitada desconfiança persistente em relação às autonomias.

Portugal tem potencialidades evidentes, da energia limpa ao turismo sustentável, da economia do mar à inovação tecnológica, da localização geográfica ao clima sedutor. Mas falta nitidamente uma ambição transformadora, um novo desígnio, que coloque a pujança hipotética ao serviço concreto do povo. O mérito abunda, embora em parte continue a fugir-nos, emigrando por não ver futuro no berço da sua existência. A hospitalidade que oferecemos ao mundo precisa agora de reflectir-se no cuidado atento a quem vive e trabalha em Portugal, seja português ou imigrante, para desgosto dos mentores das derivas totalitárias e da fúria revisionista que ignora que “cada um de nós é uma soma”, como bem lembrou a a 10 de Junho a escritora Lídia Jorge.

“Cuidar melhor da nossa gente” não é só uma exigência ética. É acima de tudo uma condição para continuarmos a ser relevantes. Um País que se quer admirado tem de ser, primeiro, habitável e solidário com os seus. E há muito por fazer em vários domínios do cuidado estrutural, se é que quer valorizar professores, zelar pelos profissionais de saúde, garantir habitação acessível, criar emprego qualificado, apostar na justiça célere e implementar uma administração pública eficiente.

O orgulho da nação valente não decorre apenas da glória efémera feita de medalhas, prémios e taças alcançadas pelos conquistadores de cada tempo, nem das vénias dos cidadãos, agora “apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso”, e que hoje “regrediram à subtil designação de seguidores” de ídolos que são fantasmas. Antes brota do respeito pela dignidade humana de cada um dos nossos, independentemente da sua condição social, ambição pessoal e notoriedade comunitária. Só assim Portugal será verdadeiramente um esplendoroso exemplo à escala mundial. Apenas quem trata bem quem criou poderá recebe melhor quem quer descobrir tamanha generosidade.