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Crónicas

E deu-me uma ilha

E eu sabia que a minha tia estava a fazer muito por mim, ao dar-me o Porto Santo pela primeira vez

O perfil da ilha ao longe, aquela risca amarela a separar a terra do mar e, depois, ao desembarcar, o calor que abraça e pede para sermos diferentes, para despir o casaco e ter menos pressa. A primeira vez que aqui vim tinha 11 anos e subi pelos degraus do cais com a roupa e os sapatos de ir à missa. A minha mãe não fez por menos, que a pequena não ia fazer má figura no passeio da Conceição e dos colegas do hotel, mal sabia que éramos todos inexperientes em viagens e barcos.

As ondas e os balanços deram-me a volta à cabeça com a ajuda de um bolo e de uma brisa maracujá que a mim ninguém me explicou que os doces não ajudam no mar. A minha tia Conceição confiou nos comprimidos e acreditou que todas as pessoas eram como ela, capazes de afugentar os aborrecimentos e o enjoo com o entusiasmo do passeio. E não havia como aquela tia para desencantar a companhia, o saco para o fato de banho e a toalha, a máquina fotográfica e até uns óculos de sol, sem fazer a conta ao dinheiro para as passagens, o almoço e as uvas.

Dos quatro adultos que me acompanharam naquela aventura pelo Porto Santo, foi a minha tia que acertou o preço com o taxista que nos levou a ver as vistas e nos deixou à porta de um restaurante de praia. E foi lá, com o mar ao fundo, que me sentei pela primeira vez para almoçar fora, acho que foi o prato mais barato da ementa, que arrumar quartos no hotel Girassol não dava para todos os luxos. E eu sabia que a minha tia estava a fazer muito por mim, ao dar-me o Porto Santo pela primeira vez.

Os outros vestiram os fatos de banho e entraram na água. Eu tirei os sapatos de ir à missa e fui molhar os pés e depois juntei-me à minha tia para andar nos baloiços à entrada do cais. E rimos tanto, as duas, e, se fechar os olhos, acho que sou capaz de ouvir as gargalhadas sonoras da minha tia Conceição, são as mesmas que dá nos raros momentos em que consigo vislumbrar a mulher despachada, que arrumava quartos no hotel Girassol, pintava os lábios e ia ao cabeleireiro de três em três meses fazer uma permanente.

A demência levou quase tudo e deixou-a assim, uma velhinha surda, que já não me reconhece, nem sabe que sou a Lina Marta, a sobrinha que amou como se ama uma filha. A mesma a quem deu, nos anos faculdade, cinco contos por mês para ajudar nos estudos, nas fotocópias, “no que te fizer falta” ou por quem ia comprar fruta para ajudar na quimioterapia e trazia o mais caro, morangos e pêssegos, “o que tu gostares mais”. E deve ter sofrido por mim, eu que era a mais nova e ela queria que fosse a última a morrer.

A generosidade vinha embrulhada em doses de mau feitio, no excesso de nos dar tudo e de se zangar de uma maneira sem medida, como a água a quebrar um dique e a inundar tudo, o bom e o mau. E não era fácil gostar dela, nem a tia Conceição gostava das pessoas sempre com a mesma intensidade, a não ser de nós, os sobrinhos. Com as irmãs discutia muito, sobretudo com a minha mãe, mas por mim fez tudo o que conseguiu para me ver feliz. E deu-me o Porto Santo num passeio de Verão, tinha eu 11 anos e acabara de passar para o 2º ano do ciclo.