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Crónicas

O bom, o mau e o náufrago

Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas. No mesmo ano em que os Estados Unidos elegeram um burlão tresloucado para Presidente, que ainda a semana passada se travestiu de Papa e partilhou o atrevimento com o mundo, seria um outro americano eleito para subir à varanda de São Pedro. Porém, é na nacionalidade que começam e acabam as semelhanças entre Trump e Prevost (agora Leão XIV). Ao contrário do presidente americano, Leão é um cristão erudito, calmo e solidário. Se existe ironia divina, acabámos de a testemunhar.

O bom: Eleições e o Funchal

Num ápice, a disputa autárquica pelo Funchal - aquela que se adivinhava mais acesa - ficou órfã dos seus candidatos mais óbvios. Num abrir e fechar de olhos, PS e PSD voltaram à estaca zero. A situação partidária é, à primeira vista, semelhante, mas carrega significados políticos profundamente distintos. No caso do PS, a saída de cena de Miguel Silva Gouveia tem contornos inegáveis de quem aceita dar um passo atrás, para dar, de seguida, dois em frente. Na hora da saída, Gouveia não só desafiou a liderança de Cafôfo, como deixou o Presidente do PS-Madeira com a missão impossível de encontrar um substituto que faça, em três meses, o que Gouveia preparou durante 4 anos. Essa impossibilidade é, também, uma armadilha, pois na ausência de alternativas e com o JPP à espreita no Funchal, Cafôfo pode olhar para a sua candidatura como um mal menor, sem antever o desastre que daí viria. Quanto ao PSD, a indisponibilidade de Cristina Pedra, embora não seja uma fatalidade eleitoral, coloca o complexo desafio político de escolher um candidato e preparar uma campanha com um presidente, do mesmo partido, ainda em funções. Como compensação, o PSD parte para as próximas eleições com a vantagem de quem governou a cidade e com a confiança partidária oferecida por uma recente e alargada vitória eleitoral no Funchal e na Região. Ao contrário dos socialistas, ao PSD basta ouvir os militantes e não inventar. É certo que não há nada de positivo na ausência dos candidatos indiscutíveis à Câmara do Funchal, mas é precisamente esse inesperado vazio que abre espaço a novos protagonistas, a novas soluções, enfim, à política. E isso é sempre positivo.

O mau: A Madeira e a campanha eleitoral

Ouve-se e, por vezes, não se acredita. Numa época em que os consensos políticos se adivinham tão difíceis de atingir, a campanha eleitoral regional para as legislativas nacionais parece provar o oposto. Da esquerda à direita partidária, entoa-se, em uníssono, a mesma cartilha de reivindicações insulares à República. A revisão da lei de finanças regionais, a eliminação do cargo de representante da República e a criação de um sistema fiscal próprio passaram a ser a santíssima trindade de qualquer candidatura madeirense às legislativas nacionais. Não são, obviamente, temas menores, mas a sua repetição mecânica por todos os partidos na Madeira contrasta com a incapacidade generalizada de fazer eco dos mesmos na campanha ou na governação nacional. Paradoxalmente, a reprodução compulsiva destes temas transforma-os em lugares-comuns, autênticos objetos abstratos que flutuam no éter político sem substância prática palpável. De tanto figurarem no discurso político regional, a lei de finanças regionais, o representante da República e o sistema fiscal próprio diluíram-se num mero exercício retórico que, há muito, deixou de provocar sobressalto. O que deveria ser uma agenda mobilizadora e transformadora da Região, tornou-se, assim, num ritual desprovido de substância.

O náufrago: Paulo Cafôfo

Reza a história que, enquanto o Titanic sucumbia às águas do Atlântico, um grupo de músicos a bordo dedicava-se a tocar música clássica para acalmar os passageiros do navio condenado. É com essa sensação que ficamos quando assistimos ao que chegou a liderança de Paulo Cafôfo ao leme do Partido Socialista. Um naufrágio lento, sofrível e totalmente alheado do drama que o rodeia. Depois do primeiro rasgão no casco socialista, causado pela amplamente dissecada derrota eleitoral, e contra todas as expectativas, o capitão do Titanic cor de rosa algemou-se ao leme do navio e ordenou que se avançasse a toda a força em direção ao próximo ato eleitoral. À medida que a água invade os porões do navio partidário, os militantes mais precavidos já embarcaram nos botes salva-vidas e remam, desesperadamente, para bem longe, temendo o inexorável vórtice do naufrágio socialista em câmara lenta. E enquanto a proa do PS-Madeira se inclina para uma vertiginosa queda rumo às, nunca antes exploradas, profundezas eleitorais, o seu intrépido capitão mantém-se firme e fiel à rota traçada. De tal forma que Paulo Cafôfo se remeteu ao silêncio, à exceção de uma pífia intervenção final, durante a discussão parlamentar sobre o Programa de Governo. Provavelmente, a primeira vez na história do parlamento madeirense que um líder partidário e parlamentar não faz qualquer intervenção nesta discussão. Cafôfo esteve fisicamente presente, mas politicamente ausente do debate. Cada vez mais sozinho, o presidente do PS-Madeira permanece na ponte de comando do navio, de binóculos apontados a um horizonte imaginário onde, depois de uma improvável vitória nas legislativas nacionais, se segue uma inenarrável candidatura, em nome próprio, à Câmara do Funchal.