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Crónicas

Democracia e dores nos joelhos

1. A democracia na Madeira depende do estado físico de Albuquerque.

Há sempre uma altura, mesmo que ninguém a saiba nomear, em que se percebe que o fim começou, que já se entrou na curva descendente, que o que aí vem não é esperança, mas exaustão. O problema, quase sempre, é que o próprio não o percebe. Ou percebe, mas finge que não. Ou percebe e não quer saber. E Miguel Albuquerque está aí. Está nesse ponto mudo em que a permanência já não se explica. Em que as palavras soam ocas. Em que os discursos se tornam repetições. Em que a presença já não serve, apenas pesa. Mas ele não sai.

Ele, que um dia, parece mentira, mas está escrito, está nos jornais, está gravado em entrevistas e textos, defendeu a limitação de mandatos. O mesmo Miguel Albuquerque. O mesmo que agora diz que poderá recandidatar-se em 2029 se “estiver bem fisicamente”. O mesmo que dizia que a renovação era essencial. Que os longos períodos no poder geravam vícios. Que era necessário impedir a cristalização do poder. Transparência. Alternância. Limites. E agora, vê-se. Agora, fica. Mesmo com escândalos. Mesmo com processos. Mesmo que vá a julgamento. Mesmo com o país inteiro a olhar.

Fica porque quer. Fica porque pode. Fica porque o partido é dele. Fica porque construiu à sua volta um vazio conveniente. Fica porque criou uma máquina que se alimenta da sua permanência. Fica porque tem medo. Fica porque já não sabe o que fazer se deixar de estar. Fica porque não consegue. Não consegue abandonar a mesa onde comeu durante tantos anos. A mesa onde serviu os seus. Onde empurrou os outros. Onde deu de comer a muitos e fechou a porta a outros tantos. Onde fez da política uma coisa íntima. Uma coisa sua. Uma extensão do corpo. E agora, fala-nos do corpo. Do estado do corpo. Diz-nos que talvez continue se o corpo deixar. Como se tudo dependesse das articulações. Como se a democracia fosse uma questão de fisioterapia.

Há qualquer coisa de grotesco nisto. Uma espécie de dignidade perdida que se esvai nas palavras ditas com cara séria. A mesma cara com que antes defendia exactamente o contrário. A mesma cara com que se apresentava como símbolo da renovação do PSD-Madeira. A mesma cara com que dizia que os barões não podiam eternizar-se. E agora é ele. Agora é ele o barão. O cacique. O senhor do palácio. E não se vê dali a sair, a não ser se a coluna ceder ou se a Justiça for suficientemente rápida para lhe bater à porta.

Mas mesmo isso, mesmo o julgamento, não o demove. Já o disse. Já o declarou. Mesmo que vá a julgamento, não se demite. Como se o julgamento fosse um detalhe. Como se responder em tribunal fosse compatível com a presidência de um Governo.

E enquanto isso, a Madeira assiste. Silenciosa. Cansada. As pessoas assistem como quem vê um espectáculo deprimente repetido à exaustão. Sabem todas as falas. Conhecem todos os gestos. Já não esperam surpresas. O problema é que já nem se levantam para sair da sala.

Mas ninguém diz. O PSD não diz. Porque não pode. Porque já não é um partido, é um espelho. Um reflexo do chefe. Uma sombra. Um eco. E os outros? Os outros ou têm medo, ou têm interesse, ou têm um filho nomeado, ou um contrato assinado, ou um cargo prometido. E assim se vai adiando o fim. Um fim que todos sabem necessário. Um fim que não é trágico. É só triste. Triste porque é indigno.

E no meio disto, ele. Sentado. Seguro. Convencido. A dizer que talvez continue. Que talvez volte. Que talvez se recandidate. Se o corpo deixar. Se a saúde ajudar. Como se isso fosse critério. Como se o povo da Madeira estivesse à espera do resultado de uma ressonância magnética para saber se tem ou não direito a futuro. Como se tudo dependesse da cartilagem do joelho do presidente. Como se já não fosse ele que servia a Região, mas a Região que o servia a ele.

E há quem ache normal. Há quem ache que sim. Que é melhor assim. Que, no fundo, é melhor alguém conhecido do que alguém novo. Que mais vale o velho do que o risco. Que a estabilidade se mede pela permanência, não pela qualidade.

Porque, no fim, o problema nem é ele. O problema é quem o deixou lá estar tanto tempo. Quem o deixou transformar-se nisto. Quem o aplaudiu. Quem fechou os olhos. Quem achou que não era nada de especial. Que não havia alternativa. São todos responsáveis. Somos todos responsáveis.

2. A esmola organizada.

Começa assim, como começam sempre estas coisas em que o Estado aparece, um vulto com cara de Governo, as mãos cheias de formulários, os bolsos cheios de nada, e um ar de quem quer muito ajudar mas tem mais medo do que da dor dos outros. O Estado, esse pai de família que só aparece para cobrar o que não deu, descobriu há muito que a maneira mais eficaz de fazer política social é não fazer política social nenhuma. Substitui-se o cuidado por palavras, a responsabilidade por discursos, a proximidade por tretas com percentagens, gráficos em forma de piedade, e os afectos por códigos de conduta que ninguém lê. Inventaram os cuidadores informais, essa categoria quase teológica de gente que cuida por amor, porque se o fizessem por salário já não era cuidado, era negócio.

Na Madeira, segundo os números que o Governo Regional exibe como troféus de caça, há trezentos e sessenta e cinco cuidadores com estatuto reconhecido. Trezentos e sessenta e cinco como os dias do ano, como se todos os dias da vida fossem entregues em prestações mensais de sacrifício. Duzentas e vinte e duas pessoas que recebem uma esmola estatal, outras que nem isso, porque ganham mais de quatrocentos euros de reforma e, portanto, são consideradas ricas, ricas, repito, desde que tenham um mínimo mensal de quatrocentos euros.

Cada cuidador substitui um lar, uma cama hospitalar, uma equipa de enfermagem, uma assistente social, uma fisioterapeuta, um psicólogo clínico, uma ambulância, um médico de família. Cada cuidador é um Serviço Regional de Saúde com avental manchado, um lar improvisado entre a sala e a cozinha, um centro de cuidados continuados com cheiro a sopa de legumes. Se essas 388 pessoas cuidadas fossem institucionalizadas, o Estado pagaria cerca de mil euros por cabeça (e faço as contas por baixo). Mil vezes 388, dá 388 mil euros por mês, 4 milhões e 656 mil por ano. Mas como há quem cuide por amor, esse amor que sempre dá tanto jeito ao erário público, o Governo dá entre 66,68 e 222,27 euros, quando dá.

Mas isto só se aplica a quem se ajoelha perante a santidade da burocracia. Porque o reconhecimento exige papelada, carimbos, atestados médicos, declarações de rendimentos, visitas domiciliárias, cruzes nas caixas certas e a renúncia voluntária à esperança. Muitos desistem. Outros nem tentam. E os que continuam vão acumulando prescrições e olheiras, e às vezes adoecem, e quando adoecem não há ninguém que os cuide, porque os cuidadores não têm cuidadores, só têm fadiga.

Temos medidas aprovadas em legislação, dizem eles, com a solenidade de quem recita um salmo. Mas não há operacionalização. A palavra é esta: operacionalização, como se o problema fosse de engenharia e não de decência. E em caso de emergência? Quando o cuidador adoece? Quando o cuidador morre? O que acontece? O que acontece é que o doente vai para o hospital e o hospital não sabe o que fazer com ele porque o sistema foi desenhado para não ser sistema nenhum.

Mesmo que todos recebessem o valor máximo, o Estado gastaria 972.366 euros por ano. Quase nada. Menos de um quinto do que poupa. Uma pechincha moral. Mas imaginemos que, por milagre, decidiam pagar o salário mínimo regional, 915 euros. Multipliquemos: 915 vezes 365 dá 334.975 euros por mês. Num ano: 4.019.700 euros. Ainda assim, o Estado pouparia mais de 600 mil euros. E, com isso, ganharia mais do que dinheiro: ganharia tempo, sanidade, dignidade. Mas não é uma questão de dinheiro. Nunca foi. É uma questão de escolha.

A figura do cuidador informal é um biombo. Um outsourcing emocional. Uma forma de parecer que se cuida sem cuidar. Uma cobertura legal da abdicação. A pessoa que cuida é usada como desculpa para que o sistema não funcione. Não há formação, não há descanso, não há substituição. Só há silêncio. E o silêncio é o primeiro sintoma da desistência.

Falam de valorização com a mesma linguagem com que se elogiam os mortos em discursos fúnebres. Porque a verdade é que estão a gastar a última reserva afectiva das famílias como se fosse um recurso renovável. E não é. Um dia o amor cansa. Um dia o amor rebenta. E quando rebentar, resta o vazio.

P.S.: durante o meu último mandato na Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, fui dando passos, com mais obstinação do que esperança, para alterar a Lei Regional dos Cuidadores Informais. Sabia que era uma causa perdida, e mesmo assim avancei. Sabia que, sem ajuda, seria apenas mais um documento esquecido numa gaveta governamental. Foi então que encontrei duas mulheres, a Nélida Aguiar e a Alícia Teixeira. A Nélida, cuidadora informal, em particular, ofereceu-me mais do que colaboração: ofereceu-me verdade. Trouxe-me as histórias, os rostos, as falhas escondidas nos interstícios da lei. Ajudou-me a entender o que era cuidar com o corpo e com a alma quando já não se tem nem corpo nem alma. Da Alícia recebi o conhecimento de uma assistente social. E entre as duas, não tenho dúvida nenhuma que o resultado final seria de mais dignidade para quem a merece.

Com elas transformámos um diagnóstico em proposta. Mas não chegámos a tempo. Porque, em política, como na vida, o tempo nunca é o bastante para os assuntos que realmente importam.