Desalentados e (bem) manipulados
1. Em novembro de 2008, a então presidente do Partido Social Democrata (PSD), Manuela Ferreira Leite, no final de um almoço promovido pela Câmara de Comércio Luso-Americana – e quando o assunto era a reforma do sistema de justiça como “primeira prioridade” para ajudar as empresas portuguesas a responderem às dificuldades sentidas –, fez uma intervenção que ficou para a história e que aqui recupero:
- «Quando não se está em democracia é outra conversa, eu digo como é que é e faz-se. E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia. Mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia!»
Prosa límpida, que define e antevê, com alguma exatidão, o presente e o futuro de muitas nações desta aldeia global – mas sem (substancial) racionalidade –, a qual cede caminho às emoções/paixões, a uma vigorosa retórica (e demagogia), ao populismo/tacticismo, melhor ao cálculo eleitoral e uma dinâmica da enorme (e muito profissionalizada) máquina política dos atuais e adversos tempos!
2. Dezassete anos volvidos, as várias imperfeições e debilidades dos regimes democráticos fizeram com que alguns autodeclarados “democratas” pretendam, no presente, seguir o diagnóstico acima aludido – e a terapêutica enunciada pela ex-ministra de Estado e das Finanças (e depois, infelizmente, da Educação) – por forma a implementarem as reformas defendidas pelos seus executivos, esquecendo um conjunto de valores e direitos fundamentais dos cidadãos que demoraram séculos a conquistar, sendo um deles especial, refiro-me, claro está, ao da liberdade.
Na atualidade o quadro político encontra-se virado ao contrário. O diálogo e a procura de consensos deram lugar ao conflito (real ou virtual), à agressividade/colisão, às diversas ameaças, à imposição/coação… e ao ressurgir do poderoso e hábil medo. Há no horizonte a previsão de um sinistro futuro, de tentativa de implementação de um novo paradigma e, lamentavelmente, muitos dos proeminentes líderes mundiais já não inspiram qualquer confiança nos cidadãos.
3. A democracia – e as ditas sociedades abertas – apresentam-nos o grande desafio/problema de optar onde os excessos são possíveis. Claro que é preferível “sempre” a democracia, mesmo imperfeita, à ditadura. Contudo, por vezes a primeira torna-se perigosa quando certos dirigentes/governantes, nas suas muitas e erradas decisões, favorecem os seus protegidos e privatizam a “coisa pública” (res publica) e o Bem Comum. Qualquer coincidência com a atual realidade regional, nacional e internacional não é por acaso. O futuro é cada vez mais incerto, confuso e labiríntico... e o individualismo e imediatismo dos tempos modernos não favorece os moderados nem dá espaço para novas e eficientes ideias. Na praça pública despontam todos os dias novos demagogos que através da adulação e da lisonja levam o povo a agir segundo a sua (deles) vontade, e o paradoxo dos novos tempos é que há cada vez mais democracias onde poucos homens “livres” (bilionários e muito poderosos) mandam num grande número de homens que já não o são. Coletivamente falhamos, porque não conseguimos suster o incremento do personalismo e hoje indivíduos perigosos, autoritários, “populistas” e embriagados de poder governam dominantes nações (quase) sem limites.
4. Desde os seus primórdios que a democracia é perseguida pelo fantasma do desalento. Platão teceu duras críticas à democracia. As enormes oportunidades, alternativas e expetativas que despertou – e que não concretizou (totalmente) – , geraram de imediato um enorme desgaste e desconfiança. Segundo a opinião de alguns, é um regime onde existe uma luta tumultuosa de egoísmos sempre insatisfeitos com o exercício do poder e, simultaneamente, onde proliferam interesses económicos sedentos de mais e mais lucro. Foi com Péricles, o sucessor de Clístenes, que a experiência da democracia ateniense se consolidou. Ela possibilitou a todos os cidadãos, independentemente de terem riqueza pessoal ou não, a participação na vida política. Mas, se por um lado foi um prodigioso esforço, por outro foi também um grande fracasso: excluiu da participação democrática os escravos, as mulheres e os estrangeiros, ou seja, parte significativa da população e por isso durou pouco mais de um século. Hoje, num tempo em que quase tudo é superficial e passageiro, a democracia volta a passar por um tempo ‘delicado’, de esmorecimento e descrédito e parece já não haver ânimo para excecionais ideias e políticas, assim como notáveis e inspiradores líderes que procuram equilíbrios e entendimentos, em vez do confronto e da edificação de muros. Em suma, a democracia é um sistema frágil desde a sua invenção na cidade de Atenas, e assim continua mais de dois mil e quinhentos anos depois.
5. Nesta nova era tecnológica, sacrificamos a nossa (e de outros) privacidade e intimidade e vivemos cada vez mais tempo fixados num pequeno ecrã táctil. Quatro em cada dez jovens de 18 anos portugueses passam agora cinco ou mais horas por dia na internet, revelou um estudo recente. Estamos dispostos a expor-nos e adoramos expiar-nos uns aos outros nas famosas redes sociais, veículos de comunicação onde as frases curtas, selfies, os pensamentos/comentários “portáteis” e/ou simplistas ajustados à nossa pressa, os twittes… refletem (e respondem) ao frenesim da vida moderna e ao apetite de grande consumo e sucesso. Vivemos na sociedade do espetáculo, dos reality shows, da imagem impactante, dos vídeos curtos e personalizados (TikTok’s), da exuberância, do disparate e aplaudimos e elogiamos (e até transformamos em novos “heróis”) aqueles que se exibem em todas estas plataformas virtuais de forma a captar a nossa atenção e a manter o desejo vivo. Neste jovem modelo social digital “narcisista” valorizamos a verdade, mas mentimos uns aos outros. A sinceridade e honestidade deu lugar à manipulação, à desinformação, à construção de narrativas pseudo-reais (fake news, imagens alteradas, a vozes de figuras mediáticas ‘recriadas’ pela inteligência artificial – vozes deepfake) e à adoção de uma linguagem reformadora por muitos ainda pouco compreendida. Enquanto espetadores e consumidores, sem nos apercebermos, somos manipulados (e vigiados) de diversas formas e por quem tem o poder para fazer passar as mensagens que servem um certo tipo de poder que pode (não) coincidir com os nossos interesses, desde logo a capacidade/faculdade de pensarmos com liberdade e autonomia. Estamos cada vez mais expostos a conteúdos enganadores que partem de organizações ocultas ou até tuteladas por alguns Estados que, por exemplo, visam emitir discursos de ódio e/ou subverter eleições. A este propósito, infelizmente alguns dos programas de verificação que tinham sido implementados para combaterem as notícias falsas e a desinformação nas redes sociais, foram ultimamente suprimidos. Está de volta a possibilidade de se disseminar informação/comunicação sem “freios, sem regulação e sem qualquer controlo sobre os conteúdos”. Nas palavras de Mark Zuckerberg, dono da Meta, “este é o tempo de voltar[mos] às nossas raízes em torno da liberdade de expressão”, pois o programa de verificação de factos do Facebook “chegou a um ponto em que simplesmente se cometem demasiados erros e há demasiada censura”. Seguramente, nestas palavras, para além das contradições evidentes há paraísos perdidos e utopias prometias e uma coisa é certa: num futuro já próximo a manipulação vai ganhar proporções estratosféricas e os governantes/líderes autoritários e populistas agradecem.