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O “Discurso secreto”

Faz hoje exatamente 69 anos que um discurso conhecido como “secreto” abalou o monumental edifício que na altura era o Partido Comunista da União Soviética.

Depois do fim oficial do 20º Congresso do Partido, já depois da meia-noite, foi internamente solicitado aos delegados que regressassem à sala da conferência em Kremlin para uma “sessão fechada”, sem a presença de jornalistas, convidados e delegados de outros países.

Quem se dirigiu aos presentes nesta sessão foi o primeiro secretário do Partido Comunista, Nikita Khruschov. O tópico e o teor do seu discurso foram tão inesperados e chocantes que, aparentemente, vários ouvintes sofreram ataques cardíacos e outros foram posteriormente “inspirados” a cometer suicídio. Pois, até lá, quase três anos depois da sua morte, nunca ninguém se atreveu na União Soviética de questionar a herança sangrenta e a própria figura do herói do então vigente culto de personalidade, Josef Estaline (ou Stalin).

Intitulado “Sobre o culto de personalidade e as suas consequências”, este discurso de quatro horas acabou por ser tudo menos secreto, uma vez que as cópias dele posteriormente foram lidas em milhares de reuniões das organizações regionais do partido e da sua vertente jovem, Komsomol. O discurso foi extremamente crítico, sobretudo no que diz respeito à Grande Purga, um período entre 1936 e 1938, em que pereceram centenas de milhares dos “inimigos do povo” (conforme algumas estimativas, até 1200 milhares) – camponeses mais ricos, certas etnias, dois terços dos membros do partido comunista, 13 dos 15 generais de mais alta patente, tudo numa média de mil execuções por dia.

O orador acusou Estaline de promover o culto de personalidade enquanto externamente promovia os ideais de comunismo. A desorientação dos delegados ao saírem da sala alastrou-se rapidamente entre a população geral que, de grosso modo, estava submetida a uma lavagem cerebral e repressão promovidas pelo estado e não tinha nem a coragem nem a autonomia de pensamento para conseguir lidar com o significado das qualificações articuladas por Khruschov.

O mundo ocidental soube deste discurso através da agência israelita Mossad, que o recebeu dum jornalista polaco/judeu. Todas as organizações de comunistas nos países “capitalistas”, foram fortemente abaladas, perdendo o Partido Comunista nos EUA mais de 30 mil membros durante as primeiras semanas. A publicação oficial deste discurso na União Soviética ocorreu apenas em 1989, já próximo da sua dissolução.

Algumas avaliações posteriores deste discurso, vindas do Ocidente, criticaram a atitude do orador que, sendo um homem forte do partido, sempre continuou a louvar nele o leninismo e a ideologia comunista, mas, por outro lado, exibiu um cunho oportunista e interesseiro, pretendendo culpar Estaline por todos os crimes comunistas cometidos na altura. Seja como for, Khruschov era de opinião que a vitima primária do culto do estalinismo, que Estaline próprio estava a alimentar, foi mesmo Estaline, pois tornou-se numa pessoa paranóide, facilmente influenciada pelos “amigos” a sussurrarem no seu ouvido.

Oportunista ou não, Khruschov teve uma coragem invulgar para articular em alta voz algo que muitos tinham medo até de pensar e a história do país e do partido, em termos nacionais e internacionais, foi irreversivelmente alterada.

Contemplando este momento numa perspetiva histórica que as quase sete décadas proporcionam, custa a ver que a lição parece pouco assimilada e ainda menos aproveitada, através da formação duma atitude que promova a evolução do “homo politicus” para um ator desinteressado, empenhado no progresso do seu país sem detrimento para a comunidade internacional.

Hoje em dia, muitos são chamados de ditadores, populistas e ilegítimos. No entanto, e como referiu um jornalista no jornal britânico “The Independent”, não há um culto de “zelenskinismo” enquanto florescem, e bem, os de “trumpismo” e “putinismo”. E vários líderes de outros países copiam e promovem, em proporção adequada, estas tendências.

Os métodos são, na sua maioria mas nem sempre, atualizados e adaptados ao presente, mas o raciocínio e o “spiritus movens” mal se alteraram. E a centralização do poder (apesar das alegações exatamente ao contrário) parece seguir mais um padrão (ou, melhor dito, roda perpétua) da história da sociedade humana, sem se ter conseguido transformar o mal para o bem, o sofrimento para a felicidade e a morte para a vida. Haverá, daqui a alguns anos, mais uns discursos, mais ou menos secretos, a criticar aquilo que, à partida, nem devia ter sido feito?