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Crónicas

Estarão mesmo verdes?

A história que me estou a contar é real? Usar esta pergunta é uma forma de nos descolarmos e desapegarmos das narrativas e filmes que criamos na nossa cabeça e assim, ganharmos uma distância curiosa, crítica, estratégica, saudável, em relação à nossa própria perceção

“Chegando uma raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas e cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse:

– Estão verdes...” – in, A Raposa e as Uvas (Esopo 620-564 a.C.)

Quem nunca? Chama-se a isto - dissonância cognitiva - teoria muito interessante, criada por Leon Festinger.

Nada tem sentido, a não ser aquele que lhe atribuímos. Tendemos, naturalmente, a procurá-lo em tudo e neste processo, a congruência é rainha.

A dissonância cognitiva origina um estado interno de profunda incongruência que, por sua vez, gera desconforto causado por um conflito entre o que pensamos, o que sentimos e o que fazemos. Por outras palavras, quando agimos contrariamente àquilo em que acreditamos. Ora, para minimizar este desconforto e restabelecer o equilíbrio, mudamos um dos factores. Por exemplo, alguém que é honesto e cuja verdade é um valor essencial e, de repente, apanha-se a si próprio a mentir, para não ter que dar satisfações incómodas. Só que vai sentir-se mal por ter mentido. Ou, o exemplo de uma mulher cujo marido a persegue e, mesmo sentido-se invadida, ela relata o comportamento justificando: “ele só se preocupa comigo e quer ver se estou bem”. De repente, parece que nalguns momentos da nossa vida, a dissonância cognitiva parece ser útil (já explico porquê!).

Quando o nosso conhecimento, opinião, crenças, valores e/ou princípios tropeçam numa informação contrária, seja ela traduzida num raciocínio novo ou em comportamentos específicos, aparece a incoerência, e faremos o que for necessário para eliminar os seus efeitos no nosso estado emocional. Na prática, fazemos o mesmo que a raposa da fábula de Esopo. Perante a incapacidade de alcançar as uvas e a necessidade de diminuir o desconforto, a raposa mudou o pensamento afirmando: “estão verdes”. Portanto, quando acontece a dissonância, das duas uma, ou aquilo que sabemos e pensamos adapta-se ao comportamento, ou o comportamento adapta-se ao nosso conhecimento. Festinger considera que a necessidade de eliminar a dissonância é tão importante quanto a necessidade de satisfazer necessidades básicas e de segurança. E se a natureza do conflito for grande, a dissonância acompanha em proporção. Entram em cena os mecanismos de defesa do ego.

Agora que sabemos isto, se observarmos o espectro político regional, nacional e internacional, vemos este fenómeno com muita clareza. Parece que vivemos dias de pouca credibilidade política e é frequente escutarmos eleitores a assumirem que se sentem indecisos. Sucedem-se os alegados casos de corrupção, disparam as denúncias anónimas sobre políticos e dirigentes de cargos públicos, as alegadas negociatas com empresas privadas de renome. No fundo, parece que se tornam francamente escassas as alternativas para quem deseja votar num político sério, num partido honrado.

É muito interessante perceber que, no entanto, a maioria das pessoas que conhecemos assumem-se sem qualquer pudor, anti-corrupção. Só que tropeçamos nas redes sociais, com mensagens do género destas: “É anti-corrupção, mas passa à frente nas filas de espera porque conhece o braço direito do médico”, “é anti-corrupção, mas não se coibe de ligar ao amigo a avisar que o seu irmão vai lá passar para pedir para consultar o documento X”, e assim por diante. A cada exemplo pode aumentar a sensação de mal estar. E a cada exemplo podem surgir desculpas como: “roubou, mas construiu bons acessos”, “deu aos amigos, mas o dinheiro ficou na terra”, “mentiu, mas é um charme de pessoa, mais cedo ou mais tarde, todos mentem”…

A dissociação conduz tantas vezes, a alegações falsas, depreciativas, simplesmente pelo facto de um não conseguir destacar-se face a outro. Infelizmente, muitos acham que é mais fácil destruir o bom nome de alguém, na tentativa de o ver numa posição inferior, do que tentar erguer-se, honestamente, para um patamar mais elevado. E se é bom ter a sagacidade das raposas, tidas como mamíferos astutos, perspicazes, o mesmo não se aplica na hora de imitá-las, como nesta fábula, alegando que o que se cobiça é imprestável, só pela dificuldade de alcançar o que se deseja.

E verdade que todos estes comportamentos falam de auto-preservação. A questão é percebermos todos que; ao nos preservarmos, afastando-nos do real para viver na dimensão ilusória das desculpas, justificações e histórias que nos impedem de ver a verdade em nós, é uma outra forma, ainda mais profunda de perpetuarmos um estado de desconforto. Saber isto, deve abrandar-nos e fazer-nos reflectir acerca dos nossos próprios actos corruptos (e outros, muitos outros!). Ao ganharmos consciência da nossa própria dissonância cognitiva em ação, indentificamos facilmente, os comportamentos pessoais que roçam, como neste exemplo que trouxe, a corrupção ou, até mesmo, os que conferem corrupção. É uma oportunidade para pensarmos, sentirmos e fazermos diferente. Nestes momentos, ter a consciência do potencial de dissonância dá-nos a possibilidade de saber que se a decisão contrariar algum outro elemento da cognição seremos, implacavelmente, julgados pela nossa consciência.

A proposta é a de olharmos para nós próprios como detetives, procurando conhecer-nos mais profundamente, questionando a nossa auto-imagem, os nossos pensamentos, as nossas crenças e comportamentos, respeitosamente e sem crítica. Levantando o véu, observando e descobrindo a origem, avaliando as evidências. Acolhendo as respostas. Se a auto-imagem é inapropriada e precisa de ser transformada, encontraremos respostas inéditas que construirão uma nova imagem, mais fiel à nossa essência. Se a auto-imagem for adequada e se for para preservar, podemos investigar as nossas escolhas, condutas e comportamentos, ajustando-os aos nossos valores e crenças, ao que é realmente importante para nós.

É por isso que sou defensora de conversas que sejam bons encontros. Que é como quem diz, discussões saudáveis, honestas, entre pessoas com visões diferentes (sejam elas políticos, casais, pais e filhos, amigos…), desde um lugar de curiosidade e flexibilidade. Quando acontece, ganhamos todos mais consciência, dissolvem-se as dissonâncias cognitivas, assim como o desconforto associado e cresce o conhecimento geral. E isto é válido para tudo na vida.